São Paulo, sexta-feira, 25 de outubro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A curiosa história do forasteiro e dos notáveis

O anedotário judaico é um dos mais ricos e, além de provocar o riso, provoca uma reflexão. Lembro uma história que me foi contada por um ex-cônsul de Israel no Rio, Jacob Gottal, que aliava sua competência diplomática a uma notável capacidade histriônica. Era polonês de nascimento e gostava de contar histórias de sua aldeia, próxima da Cracóvia.
Um judeu religioso, mascate de profissão, com um nome bastante óbvio -Elias-, estava percorrendo as vilas onde recebia as prestações que lhe deviam. Nisso, brilhou no céu a primeira estrela anunciando o sabat e, como Elias era fiel cumpridor da lei, procurou o rabino da sinagoga local e entregou-lhe todo o dinheiro que carregava: "Rabi, sou religioso, cumpro a lei e não vou ficar com este dinheiro durante o sabat. Guarde-o para mim, amanhã virei buscá-lo".
O rabino elogiou a devoção de Elias, mas disse que só aceitaria guardar o dinheiro se houvesse testemunhas qualificadas de que o forasteiro confiara nele. Chamou três notáveis da comunidade, apresentando-os a Elias.
"Aqui estão os três judeus mais piedosos e honestos da cidade. Salomão é dirigente de um orfanato mantido pela comunidade, Moisés é reitor do nosso Centro de Estudos Talmúdicos e Davi é o provedor que toma conta do nosso cemitério. Além de notáveis no seio da comunidade, os três são candidatos a prefeito da cidade. Representam o que de melhor temos em matéria de caráter e probidade.
Dirigindo-se às três testemunhas, o rabino explicou: "Aqui está o nosso irmão de fé, Elias, que, de passagem pela nossa cidade, não quis ficar de posse do dinheiro que arrecadara entre seus clientes, uma vez que a primeira estrela do sabat já brilhou no céu. Vocês serão testemunhas de que o forasteiro me entregou o dinheiro para guardá-lo até amanhã".
Elias deu a bolsa cheia de dinheiro ao rabino, abrindo-a antes para que as testemunhas vissem o dinheiro lá dentro. Dispersaram-se, cada um foi para seu canto. Elias cumpriu suas devoções na sinagoga e, quando a primeira estrela surgiu no céu anunciando que mais um sabat se fora, ele foi ao abrigo.
"Rabi, meu coração está cheio de gratidão pelo senhor, vou partir agora mesmo e vim apanhar a sacola com o meu dinheiro."
"Que sacola? Que dinheiro?", perguntou o rabino.
Elias não se assustou. Lembrou que o próprio rabino providenciara três testemunhas categorizadas.
"Sendo assim", disse o rabino, "tudo se resolverá. Chamarei aqui as testemunhas que o senhor invoca".
O primeiro que apareceu foi Salomão, diretor do orfanato mantido pela comunidade.
"Salomão", disse o rabino, "aqui o nosso patrício diz que ontem, ao começar o sabat, e em sua presença, me entregou uma bolsa cheia de dinheiro. Você se lembra disso?".
Salomão balançou a cabeça, negando ter visto qualquer forasteiro e qualquer bolsa vazia ou cheia de dinheiro. O rabino chamou Moisés, o intelectual, reitor do Centro de Estudos Talmúdicos. Também ele negou ter visto a bolsa, o forasteiro e a entrega do dinheiro. Em seguida Davi foi chamado.
O provedor do cemitério, que se encarregava das cerimônias fúnebres da comunidade, tinha mau hálito e uma cara apropriada às funções que desempenhava. Negou com veemência ter testemunhado aquela cena e entrou a esbravejar contra a ganância dos forasteiros que sempre inventam um modo de explorar a boa-fé dos bons judeus da cidade.
Apatetado, Elias acreditou que fora vítima de uma alucinação. Impossível que o rabino, mais os três notáveis daquela comunidade, candidatos à prefeitura local, estivessem enganados. Quem devia estar enganado era ele mesmo. Sonhara que trazia uma bolsa cheia de dinheiro e que a entregara na sinagoga para cumprir a lei do sabat.
Resignado, pediu desculpas ao rabino, jurou que agira de boa-fé, mas, diante dos testemunhos de tão notáveis personagens, admitia que fora vítima de um delírio. Deu as costas ao rabino e preparava-se para sair da sinagoga, quando ouviu o chamado: "Meu filho, venha cá. Tome a sua sacola e o seu dinheiro".
Foi a um armário, apanhou a sacola e a entregou a Elias.
Pasmo, o forasteiro não entendia o que houvera. Perguntou o motivo daquela encenação, que lhe ia custando um ataque fulminante não apenas em seu coração, mas em sua fé religiosa.
O rabino explicou: "Você é um forasteiro, durante o ano todo percorre as cidades e aldeias vizinhas. Quero que conte em todos os lugares o que houve e que todos saibam a espécie de homens piedosos que eu tenho aqui".
Como disse no início, a história do rabino e de Elias nem chega a ser uma anedota. Nem é tão engraçada como outras piadas que Woody Allen coloca em seus filmes. É muito grande para ser uma gag. Mas tem uma lição de sabedoria que transcende os judeus e serve para qualquer homem, para todos nós, feitos no mesmo barro amassado por Deus ou pela lenta e incompleta evolução que transformou macacos em reis da Criação.


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