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CARLOS HEITOR CONY
A curiosa história do forasteiro e dos notáveis
O anedotário judaico é
um dos mais ricos e, além de
provocar o riso, provoca uma reflexão. Lembro uma história que
me foi contada por um ex-cônsul
de Israel no Rio, Jacob Gottal, que
aliava sua competência diplomática a uma notável capacidade
histriônica. Era polonês de nascimento e gostava de contar histórias de sua aldeia, próxima da
Cracóvia.
Um judeu religioso, mascate de
profissão, com um nome bastante
óbvio -Elias-, estava percorrendo as vilas onde recebia as
prestações que lhe deviam. Nisso,
brilhou no céu a primeira estrela
anunciando o sabat e, como Elias
era fiel cumpridor da lei, procurou o rabino da sinagoga local e
entregou-lhe todo o dinheiro que
carregava: "Rabi, sou religioso,
cumpro a lei e não vou ficar com
este dinheiro durante o sabat.
Guarde-o para mim, amanhã virei buscá-lo".
O rabino elogiou a devoção de
Elias, mas disse que só aceitaria
guardar o dinheiro se houvesse
testemunhas qualificadas de que
o forasteiro confiara nele. Chamou três notáveis da comunidade, apresentando-os a Elias.
"Aqui estão os três judeus mais
piedosos e honestos da cidade. Salomão é dirigente de um orfanato
mantido pela comunidade, Moisés é reitor do nosso Centro de Estudos Talmúdicos e Davi é o provedor que toma conta do nosso
cemitério. Além de notáveis no
seio da comunidade, os três são
candidatos a prefeito da cidade.
Representam o que de melhor temos em matéria de caráter e probidade.
Dirigindo-se às três testemunhas, o rabino explicou: "Aqui está o nosso irmão de fé, Elias, que,
de passagem pela nossa cidade,
não quis ficar de posse do dinheiro que arrecadara entre seus
clientes, uma vez que a primeira
estrela do sabat já brilhou no céu.
Vocês serão testemunhas de que o
forasteiro me entregou o dinheiro
para guardá-lo até amanhã".
Elias deu a bolsa cheia de dinheiro ao rabino, abrindo-a antes
para que as testemunhas vissem o
dinheiro lá dentro. Dispersaram-se, cada um foi para seu canto.
Elias cumpriu suas devoções na
sinagoga e, quando a primeira estrela surgiu no céu anunciando
que mais um sabat se fora, ele foi
ao abrigo.
"Rabi, meu coração está cheio
de gratidão pelo senhor, vou partir agora mesmo e vim apanhar a
sacola com o meu dinheiro."
"Que sacola? Que dinheiro?",
perguntou o rabino.
Elias não se assustou. Lembrou
que o próprio rabino providenciara três testemunhas categorizadas.
"Sendo assim", disse o rabino,
"tudo se resolverá. Chamarei
aqui as testemunhas que o senhor
invoca".
O primeiro que apareceu foi Salomão, diretor do orfanato mantido pela comunidade.
"Salomão", disse o rabino,
"aqui o nosso patrício diz que ontem, ao começar o sabat, e em sua
presença, me entregou uma bolsa
cheia de dinheiro. Você se lembra
disso?".
Salomão balançou a cabeça,
negando ter visto qualquer forasteiro e qualquer bolsa vazia ou
cheia de dinheiro. O rabino chamou Moisés, o intelectual, reitor
do Centro de Estudos Talmúdicos. Também ele negou ter visto a
bolsa, o forasteiro e a entrega do
dinheiro. Em seguida Davi foi
chamado.
O provedor do cemitério, que se
encarregava das cerimônias fúnebres da comunidade, tinha mau
hálito e uma cara apropriada às
funções que desempenhava. Negou com veemência ter testemunhado aquela cena e entrou a esbravejar contra a ganância dos
forasteiros que sempre inventam
um modo de explorar a boa-fé
dos bons judeus da cidade.
Apatetado, Elias acreditou que
fora vítima de uma alucinação.
Impossível que o rabino, mais os
três notáveis daquela comunidade, candidatos à prefeitura local,
estivessem enganados. Quem devia estar enganado era ele mesmo. Sonhara que trazia uma bolsa cheia de dinheiro e que a entregara na sinagoga para cumprir a
lei do sabat.
Resignado, pediu desculpas ao
rabino, jurou que agira de boa-fé,
mas, diante dos testemunhos de
tão notáveis personagens, admitia que fora vítima de um delírio.
Deu as costas ao rabino e preparava-se para sair da sinagoga,
quando ouviu o chamado: "Meu
filho, venha cá. Tome a sua sacola
e o seu dinheiro".
Foi a um armário, apanhou a
sacola e a entregou a Elias.
Pasmo, o forasteiro não entendia o que houvera. Perguntou o
motivo daquela encenação, que
lhe ia custando um ataque fulminante não apenas em seu coração, mas em sua fé religiosa.
O rabino explicou: "Você é um
forasteiro, durante o ano todo
percorre as cidades e aldeias vizinhas. Quero que conte em todos
os lugares o que houve e que todos
saibam a espécie de homens piedosos que eu tenho aqui".
Como disse no início, a história
do rabino e de Elias nem chega a
ser uma anedota. Nem é tão engraçada como outras piadas que
Woody Allen coloca em seus filmes. É muito grande para ser
uma gag. Mas tem uma lição de
sabedoria que transcende os judeus e serve para qualquer homem, para todos nós, feitos no
mesmo barro amassado por Deus
ou pela lenta e incompleta evolução que transformou macacos em
reis da Criação.
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