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São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

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"PELA BANDEIRA DO PARAÍSO"

Jon Krakauer narra histórias de crimes cometidos por fundamentalistas americanos

Extremismo religioso explica episódios bizarros

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O jornalismo literário americano tem uma tradição consolidada de grandes livros que contam em detalhes crimes horrendos, como "A Sangue Frio", de Truman Capote, e "A Canção do Carrasco", de Norman Mailer. A eles, vem se juntar "Pela Bandeira do Paraíso", de Jon Krakauer, que acaba de ser editado no Brasil pela Companhia das Letras.
Krakauer é conhecido pelo best-seller "No Ar Rarefeito", em que descreveu a aventura da expedição liderada pelo guia Rob Hall (da qual o autor fez parte) ao pico do monte Everest, e que terminou, por causa de uma tempestade imprevista, na morte do líder e de um dos oito alpinistas.
Em "Pela Bandeira do Paraíso", Krakauer é mais ambicioso. Em vez de simplesmente contar uma história (o assassinato em 1984 de Brenda Lafferty e sua filha Erica, de 15 meses, por seus cunhados Dan e Ron Lafferty, que disseram ter cometido o crime em obediência a uma ordem lhes dada diretamente por Deus), resolveu misturá-la com a história da Igreja Mórmon (os irmãos Lafferty eram seguidores de uma dissidência fundamentalista mórmon) e um caso de poligamia que envolvia uma adolescente.
O resultado é que, com frequência, o livro carece do pique típico dos seus antecessores no gênero. O ritmo é interrompido por longas notas de rodapé, e a técnica de saltar de um enredo para outro (distantes em tempo e espaço) não funciona com a eficiência de filmes e romances que a utilizam.
Além disso, a vinculação do crime dos Lafferty com a história dos mórmons pode induzir leitores desavisados (apesar de o autor deixar claro em diversos trechos que esse não era nem seu desejo nem sua convicção) a acreditarem que aquela igreja referenda ou pelo menos tolera comportamentos como a poligamia e práticas como a "expiação pelo sangue", justificativa da morte de Brenda e Erica.
Mas Krakauer atinge um objetivo importante: demonstrar como o fundamentalismo religioso, não importa se cristão, muçulmano ou judeu, é capaz de produzir eventos monstruosos, como o mundo tem testemunhado. Fanáticos que matam em nome de Deus são um dos principais subprodutos de qualquer fundamentalismo.
Ele também toca com propriedade num ponto essencial para a compreensão da psique coletiva dos Estados Unidos. Milhões de americanos parecem predispostos ao extremismo religioso, o que ajuda a explicar inúmeros episódios bizarros que misturam fé e crimes naquele país.
Desde a sua mais remota origem, os Estados Unidos estiveram sob forte influência de doutrinas fundamentalistas: os primeiros colonos eram parte de uma congregação que havia se separado do calvinismo inglês para criar sua própria igreja na Inglaterra, de onde fugiram, primeiro para a Holanda, depois para o Novo Mundo.
Seitas cismáticas de denominações estabelecidas e respeitáveis são extremamente comuns nos Estados Unidos. Os Lafferty e Brian David Mitchell, o outro criminoso de "Pela Bandeira do Paraíso" (que sequestrou uma garota de 14 anos, a violentou e a tomou como uma de suas mulheres em 2002) eram integrantes de pequenos grupos de fanáticos.
São, evidentemente, aberrações sociais. No entanto, não se pode negar que há um caldo de cultura nos Estados Unidos que induz um número imenso de pessoas a se conduzirem de maneira irracional e perigosa quando assuntos que mobilizam a fé, como o aborto, por exemplo, são discutidos.
Mais ainda, é essa tendência (talvez inconsciente) de grande parte da sociedade americana que permite a utilização bem-sucedida que muitos líderes políticos (George W. Bush entre eles) fazem da motivação religiosa para promover seus interesses ideológicos, partidários e até pessoais.
Felizmente, há uma outra característica que distingue o caráter comum dos americanos e contrabalança esse pendor ao fundamentalismo. A liberdade de expressão e o gosto pelo autoquestionamento produzem trabalhos como "Pela Bandeira do Paraíso", que mantêm a discussão viva e atenuam os efeitos de muitos vícios da sociedade americana.


Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"

Pela Bandeira do Paraíso
    Autor: Jon Krakauer Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 39,50 (384 págs.)



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