São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 2006

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MARCELO COELHO

Notícias do século 19

Ao verem os seus algozes aprisionados, "soltaram um grito longo [...] de alegria".

MELHOR AVISAR desde já que não vai ser dos mais amenos este artigo, como também não é ameno o livro de que trato: "Cinqüenta Dias a Bordo de um Navio Negreiro", de Pascoe Grenfell Hill (1802-1882). Está sendo publicado agora na coleção Baú de Histórias, da editora José Olympio.
Pascoe Hill era um pastor anglicano, que embarcou no navio inglês Cleópatra, de 26 canhões, em 26 de abril de 1842, saindo do Rio rumo a Moçambique com o objetivo de coibir o tráfico de escravos.
Numa nota de rodapé, somos informados, aliás, de que o Brasil tinha assinado com a Grã-Bretanha um tratado no já distante ano de 1826, determinando que todo tráfico negreiro seria considerado ato de pirataria a partir de 1829. Num gracioso exemplo de nosso "jeitinho", das "leis que não pegam", e de nossa independência perante as pressões das superpotências mundiais, o tratado não foi, evidentemente, levado a sério.
Os ingleses, entretanto, faziam a sua parte. É assim que o Cleópatra avista, na costas de Moçambique, na primavera de 1843, um navio suspeito com a bandeira verde e amarela (já eram, no Império, as nossas cores). O capitão Wyvill toma conta da embarcação. Pascoe Hill descreve a cena; omito alguns trechos na citação, que será longa.
"A multidão de negros, com um aspecto de esfomeados, tendo ficado descontrolada, havia se apoderado de tudo o que lhes interessava na embarcação; alguns com as mãos cheias de farinha de mandioca; alguns pegavam aves das gaiolas e as devoravam cruas. Muitos estavam ocupados enfiando nos barris de água as pontas de panos que eles rasgaram e amarraram fazendo um fio."
É intensa, e será breve, a alegria dos escravos. Depois de quebrarem seus grilhões, "eles se arrastavam em grupos e esfregavam carinhosamente nossos pés". Ao verem os seus algozes aprisionados e levados num bote até o Cleópatra, "soltaram um grito longo e universal de triunfo e de alegria".
Mas terão de permanecer no navio brasileiro. Não poderão ser levados de volta à costa moçambicana, onde seriam escravizados de novo. O navio negreiro seguirá viagem rumo à África do Sul, onde os escravos iriam se estabelecer "em liberdade", como empregados dos colonizadores britânicos. Sem experiência para cuidar da carga humana, os libertadores presenciarão cenas e mais cenas de horror. Começa com uma tempestade.
Os negros, em número de 447, estão ocupando o convés, e isso dificulta as manobras dos marinheiros.
"Isso gerou a ordem de mandar todos para baixo, o que foi imediatamente obedecido. No entanto, a noite tendo sido extremamente quente, quatrocentos infelizes apertados em um porão rapidamente começaram a fazer um esforço para voltar ao ar livre. Sendo impedidos para trás e lutando com mais força ainda para sair, a escotilha de ré foi fechada em cima deles. Na outra escotilha uma grade de madeira foi fixada. Eles se acumularam na grade, e agarravam-se a ela lutando por ar."
Na manhã seguinte, "54 corpos esmagados e lacerados foram içados do tombadilho dos escravos, trazidos para o passadiço e jogados ao mar." Durante os 50 dias da viagem, mais 109 escravos morrerão. Em seu prefácio, o historiador Alberto da Costa e Silva esclarece que a mortalidade não era tão alta no tráfico negreiro "regular", em que o interesse em manter viva a mercadoria levava a perdas por vezes inferiores a 10% da carga embarcada.
"Bien arreglados, no se mueren", diz o tripulante espanhol que acompanha os ingleses na viagem. Sua indiferença, é claro, é total. Dados os riscos e perigos do tráfico negreiro naquela época, ele diz que se trata de "una carrera para hombres perdidos". Sede, fome, frio, disenteria e esmagamentos vão matando negros todo dia. "Eles pegam avidamente as gotas de chuva que ficavam nas velas, colam seus lábios nos mastros molhados e engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos colocados lá."
Com o grande número de mortes, o porão já não fica tão apertado. "Mas o aumento das doenças e infelicidades tornou os sobreviventes mais duros e insensíveis e eles brigam e se machucam uns aos outros. O pequeno Catula, o melhor entre eles, que há seis semanas levou uma dentada na perna, continua recebendo socos e pancadas de tal maneira que seu ferimento infeccionou, tornando-se uma chaga enorme. Outro menino inteligente foi gravemente mordido na cabeça."
Ah, sim. Entre os 447 escravos, 213 eram meninos. O nome do navio brasileiro, originário do porto de Paranaguá, era Progresso.


coelhofsp@uol.com.br

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