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MARCELO COELHO
Notícias do século 19
Ao verem os seus algozes aprisionados, "soltaram um grito longo [...] de alegria".
MELHOR AVISAR desde já que
não vai ser dos mais amenos este artigo, como também não é ameno o livro de que trato: "Cinqüenta Dias a Bordo de um
Navio Negreiro", de Pascoe Grenfell
Hill (1802-1882). Está sendo publicado agora na coleção Baú de Histórias, da editora José Olympio.
Pascoe Hill era um pastor anglicano, que embarcou no navio inglês
Cleópatra, de 26 canhões, em 26 de
abril de 1842, saindo do Rio rumo a
Moçambique com o objetivo de coibir o tráfico de escravos.
Numa nota de rodapé, somos informados, aliás, de que o Brasil tinha
assinado com a Grã-Bretanha um
tratado no já distante ano de 1826,
determinando que todo tráfico negreiro seria considerado ato de pirataria a partir de 1829. Num gracioso
exemplo de nosso "jeitinho", das
"leis que não pegam", e de nossa independência perante as pressões
das superpotências mundiais, o tratado não foi, evidentemente, levado
a sério.
Os ingleses, entretanto, faziam a
sua parte. É assim que o Cleópatra
avista, na costas de Moçambique, na
primavera de 1843, um navio suspeito com a bandeira verde e amarela
(já eram, no Império, as nossas cores). O capitão Wyvill toma conta da
embarcação. Pascoe Hill descreve a
cena; omito alguns trechos na citação, que será longa.
"A multidão de negros, com um
aspecto de esfomeados, tendo ficado
descontrolada, havia se apoderado
de tudo o que lhes interessava na
embarcação; alguns com as mãos
cheias de farinha de mandioca; alguns pegavam aves das gaiolas e
as devoravam cruas. Muitos estavam ocupados enfiando nos barris
de água as pontas de panos que
eles rasgaram e amarraram fazendo
um fio."
É intensa, e será breve, a alegria
dos escravos. Depois de quebrarem
seus grilhões, "eles se arrastavam
em grupos e esfregavam carinhosamente nossos pés". Ao verem os
seus algozes aprisionados e levados
num bote até o Cleópatra, "soltaram
um grito longo e universal de triunfo
e de alegria".
Mas terão de permanecer no navio brasileiro. Não poderão ser levados de volta à costa moçambicana,
onde seriam escravizados de novo.
O navio negreiro seguirá viagem rumo à África do Sul, onde os escravos
iriam se estabelecer "em liberdade",
como empregados dos colonizadores britânicos.
Sem experiência para cuidar da
carga humana, os libertadores presenciarão cenas e mais cenas de horror. Começa com uma tempestade.
Os negros, em número de 447, estão
ocupando o convés, e isso dificulta
as manobras dos marinheiros.
"Isso gerou a ordem de mandar
todos para baixo, o que foi imediatamente obedecido. No entanto, a noite tendo sido extremamente quente,
quatrocentos infelizes apertados em
um porão rapidamente começaram
a fazer um esforço para voltar ao ar
livre. Sendo impedidos para trás e
lutando com mais força ainda para
sair, a escotilha de ré foi fechada em
cima deles. Na outra escotilha uma
grade de madeira foi fixada. Eles se
acumularam na grade, e agarravam-se a ela lutando por ar."
Na manhã seguinte, "54 corpos esmagados e lacerados foram içados
do tombadilho dos escravos, trazidos para o passadiço e jogados ao
mar."
Durante os 50 dias da viagem,
mais 109 escravos morrerão. Em seu
prefácio, o historiador Alberto da
Costa e Silva esclarece que a mortalidade não era tão alta no tráfico negreiro "regular", em que o interesse
em manter viva a mercadoria levava
a perdas por vezes inferiores a 10%
da carga embarcada.
"Bien arreglados, no se mueren",
diz o tripulante espanhol que acompanha os ingleses na viagem. Sua indiferença, é claro, é total. Dados os
riscos e perigos do tráfico negreiro
naquela época, ele diz que se trata de
"una carrera para hombres perdidos". Sede, fome, frio, disenteria e
esmagamentos vão matando negros
todo dia. "Eles pegam avidamente as
gotas de chuva que ficavam nas velas, colam seus lábios nos mastros
molhados e engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos colocados lá."
Com o grande número de mortes,
o porão já não fica tão apertado.
"Mas o aumento das doenças e infelicidades tornou os sobreviventes
mais duros e insensíveis e eles brigam e se machucam uns aos outros.
O pequeno Catula, o melhor entre
eles, que há seis semanas levou uma
dentada na perna, continua recebendo socos e pancadas de tal maneira que seu ferimento infeccionou, tornando-se uma chaga enorme. Outro menino inteligente foi
gravemente mordido na cabeça."
Ah, sim. Entre os 447 escravos,
213 eram meninos. O nome do navio
brasileiro, originário do porto de Paranaguá, era Progresso.
coelhofsp@uol.com.br
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