|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Leitura é gostosa e relaxante
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Gostoso e relaxante ler
"Uma Vida entre Livros", por
três motivos. Primeiro: há muita ilustração. Segundo: a letra é
grande. Terceiro, e mais importante: estamos diante de um
homem realizado que conta
uma história feliz.
É como se, do alto de seus 83
anos, José Mindlin tivesse decidido reunir família e amigos
em torno de uma lareira e, sem
pretensões que não as de uma
narrativa pura e simples, passasse a falar de sua ampla, mítica e apaixonante biblioteca.
Adverte o crítico Antonio
Candido no prefácio: "José
Mindlin 'escreve como fala', o
que parece fácil, mas é mais difícil do que falar como quem
escreve".
Em 19 capítulos, o autor mistura o relato da formação de
sua biblioteca com fatos de sua
vida e demonstra os benefícios
íntimos que os livros podem
proporcionar.
"A leitura para mim sempre
foi uma fonte de prazer; e gostaria que isso fosse uma coisa
generalizada", escreve.
Ficamos sabendo, por exemplo, que Mindlin começou a se
interessar por livros raros bem
antes de ser um homem rico.
Sua primeira aquisição significativa ocorreu aos 13 anos, em
1927. Foi uma edição portuguesa de 1740 do "Discurso sobre a História Universal", de
Bossuet. A mania virou obsessão nos 15 anos em que exerceu
advocacia, tornando-se algo
"patológica" desde que, "por
acaso", Mindlin passou a ser
industrial.
Durante todo esse tempo,
cultivou amizades com livreiros, em especial donos de sebo,
sobre os quais disserta carinhosamente em seu livro.
Generoso, o autor mostra detalhes de como é organizada e
como se conserva a biblioteca.
Destaca as suas raridades (de
8.000 a 10.000 livros), dentre
elas a primeira edição das obras
completas de Molière, de 1682,
ou a edição do "Fausto" de
Goethe de 1828 ilustrada por
Delacroix, sem falar das obras
anteriores a 1500.
Dá dicas, ainda, de como adquirir livros, contando histórias de leilões e de buscas incessantes por vários países. E explica que nem sempre é a idade
que confere valor a uma edição: quantas pessoas, por
exemplo, possuem um original
de 1907 das "Poesias Completas" de Machado de Assis que
traz "cagára" em vez de "cegára", erro esse corrigido a
mão pelo próprio autor em alguns exemplares?
Além de contar episódios do
convívio com escritores -entre eles Guimarães Rosa,
Drummond e até Sartre-,
Mindlin faz um balanço de suas
atividades como editor bissexto, livreiro e secretário estadual
da Cultura, cargo exercido por
menos de um ano em 75, pleno
regime militar, do qual era no
entanto opositor.
Este último ponto, aliás, é o
único em que o autor deixa
transparecer uma segunda intenção por trás do relato, qual
seja, a de justificar-se, como se
quisesse registrar em público
uma explicação. Até o estilo se
modifica.
Consumidor de letras voraz e
apaixonado, Mindlin escala
suas preferências, sem pretensão de fazer crítica literária.
Considera-se, em certa medida, um leitor "indisciplinado". O que revela pouca indulgência consigo próprio para
quem já leu cinco vezes as milhares de páginas de "Em Busca do Tempo Perdido", de
Marcel Proust, ou três vezes o
volumoso "Ulysses", de James Joyce.
"O prazer que o contato físico com o livro proporciona, a
meu ver, é insubstituível",
afirma o bibliófilo, para quem
"a leitura das telas (computador) positivamente é muito incômoda". Diz ele: "Num
mundo em que o livro deixasse
de existir, eu não gostaria de viver".
Com certeza, à leitura de seu
livro, fica claro que a biblioteca
quilométrica de Mindlin não é
fruto de exibicionismo nem tique de "novo rico".
Entre os textos, o volume traz
inúmeras ilustrações: fac símiles de manuscritos, páginas
com dedicatórias, cartas de autores conhecidos, além de capas de livros raros e de revistas
ou edições especiais realizadas
pelo próprio Mindlin.
Compõem-no também um
índice onomástico e outro, das
próprias ilustrações.
"Gostaria de viver 300 anos,
o que me permitiria ler de 25
mil a 30 mil livros", escreve
Mindlin. É mais ou menos a
sua biblioteca inteira hoje. Difícil. Mas filhos, netos, bisnetos
-e quem sabe um dia o público em geral-, pelo que ele
mesmo nos conta, saberão aos
poucos cumprir a deliciosa tarefa.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|