São Paulo, sábado, 25 de outubro de 1997.




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CRÍTICA
Leitura é gostosa e relaxante

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Gostoso e relaxante ler "Uma Vida entre Livros", por três motivos. Primeiro: há muita ilustração. Segundo: a letra é grande. Terceiro, e mais importante: estamos diante de um homem realizado que conta uma história feliz.
É como se, do alto de seus 83 anos, José Mindlin tivesse decidido reunir família e amigos em torno de uma lareira e, sem pretensões que não as de uma narrativa pura e simples, passasse a falar de sua ampla, mítica e apaixonante biblioteca.
Adverte o crítico Antonio Candido no prefácio: "José Mindlin 'escreve como fala', o que parece fácil, mas é mais difícil do que falar como quem escreve".
Em 19 capítulos, o autor mistura o relato da formação de sua biblioteca com fatos de sua vida e demonstra os benefícios íntimos que os livros podem proporcionar.
"A leitura para mim sempre foi uma fonte de prazer; e gostaria que isso fosse uma coisa generalizada", escreve.
Ficamos sabendo, por exemplo, que Mindlin começou a se interessar por livros raros bem antes de ser um homem rico. Sua primeira aquisição significativa ocorreu aos 13 anos, em 1927. Foi uma edição portuguesa de 1740 do "Discurso sobre a História Universal", de Bossuet. A mania virou obsessão nos 15 anos em que exerceu advocacia, tornando-se algo "patológica" desde que, "por acaso", Mindlin passou a ser industrial.
Durante todo esse tempo, cultivou amizades com livreiros, em especial donos de sebo, sobre os quais disserta carinhosamente em seu livro.
Generoso, o autor mostra detalhes de como é organizada e como se conserva a biblioteca. Destaca as suas raridades (de 8.000 a 10.000 livros), dentre elas a primeira edição das obras completas de Molière, de 1682, ou a edição do "Fausto" de Goethe de 1828 ilustrada por Delacroix, sem falar das obras anteriores a 1500.
Dá dicas, ainda, de como adquirir livros, contando histórias de leilões e de buscas incessantes por vários países. E explica que nem sempre é a idade que confere valor a uma edição: quantas pessoas, por exemplo, possuem um original de 1907 das "Poesias Completas" de Machado de Assis que traz "cagára" em vez de "cegára", erro esse corrigido a mão pelo próprio autor em alguns exemplares?
Além de contar episódios do convívio com escritores -entre eles Guimarães Rosa, Drummond e até Sartre-, Mindlin faz um balanço de suas atividades como editor bissexto, livreiro e secretário estadual da Cultura, cargo exercido por menos de um ano em 75, pleno regime militar, do qual era no entanto opositor.
Este último ponto, aliás, é o único em que o autor deixa transparecer uma segunda intenção por trás do relato, qual seja, a de justificar-se, como se quisesse registrar em público uma explicação. Até o estilo se modifica.
Consumidor de letras voraz e apaixonado, Mindlin escala suas preferências, sem pretensão de fazer crítica literária. Considera-se, em certa medida, um leitor "indisciplinado". O que revela pouca indulgência consigo próprio para quem já leu cinco vezes as milhares de páginas de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, ou três vezes o volumoso "Ulysses", de James Joyce.
"O prazer que o contato físico com o livro proporciona, a meu ver, é insubstituível", afirma o bibliófilo, para quem "a leitura das telas (computador) positivamente é muito incômoda". Diz ele: "Num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver".
Com certeza, à leitura de seu livro, fica claro que a biblioteca quilométrica de Mindlin não é fruto de exibicionismo nem tique de "novo rico".
Entre os textos, o volume traz inúmeras ilustrações: fac símiles de manuscritos, páginas com dedicatórias, cartas de autores conhecidos, além de capas de livros raros e de revistas ou edições especiais realizadas pelo próprio Mindlin.
Compõem-no também um índice onomástico e outro, das próprias ilustrações.
"Gostaria de viver 300 anos, o que me permitiria ler de 25 mil a 30 mil livros", escreve Mindlin. É mais ou menos a sua biblioteca inteira hoje. Difícil. Mas filhos, netos, bisnetos -e quem sabe um dia o público em geral-, pelo que ele mesmo nos conta, saberão aos poucos cumprir a deliciosa tarefa.



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