São Paulo, Quinta-feira, 25 de Novembro de 1999


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CONTARDO CALLIGARIS

Deprimentes antidepressivos

Desde o começo deste século, apareceram uma série de maneiras de medicar nossos "nervos": aos opiáceos sucedeu a coca, daí foi a vez dos barbitúricos, logo vieram as anfetaminas e enfim chegaram os calmantes, Valium e companhia. Há uma espécie de alternância: uma substância para descer e outra para subir.
Será que a felicidade se encontra dormindo tranquilamente ou acordando de vez?
Todos esses remédios habitam uma estreita fronteira entre o fármaco e a droga. Eles respondem a necessidades médicas, mas são logo adotados como corretivos da banalidade cotidiana.
São substâncias que modificam imediatamente nossa presença no mundo. Com elas, podemos apagar ou nos animar ou mesmo tomar tudo misturado e ficar zonzos e alucinados. O propósito é tão terapêutico quanto hedonista. Além da cura, elas deixam entrever a procura de uma experiência inédita: sair do ar ou então ficar na onda três dias a fio.
Ora, nessa sequência de remédios, a moda mais recente seria os antidepressivos. Mas curiosamente eles não cabem na série, pois não são psicotrópicos. Os antidepressivos levam duas semanas para se tornar ativos.
Mesmo com esse atraso, eles não prometem uma alteração da experiência, mas apenas uma tranquila variação do humor acompanhada, aliás, de efeitos secundários que certamente não se integram num projeto de novas experiências e prazeres -por exemplo, uma perda de desejo sexual. Em suma, os antidepressivos não são pílulas da felicidade.
Eles se apresentam como verdadeiros e simples remédios. Ninguém tomaria um Prozac escondido para ficar alegre uma noite. Deve ser por isso que os antidepressivos se tornaram de fato uma panacéia psíquica. Os psiquiatras, felizes de não ter de despistar toxicômanos enrustidos, acabam prescrevendo-os como se valessem para tudo: depressão, obsessão, fobia, pânico, angústia etc. Na verdade, o que reúne esses sofrimentos diferentes é a vontade dos médicos de prescrever, enfim, um remédio para o sofrimento psíquico que não seja pedido nem usado como uma droga.
Essa é a vantagem do antidepressivo. Com ele, parece que podemos tratar nossos sintomas psíquicos como pneumonias.
O sucesso dos antidepressivos na década de 90 não é o fruto de nenhum triunfo da ciência. É muito mais a consequência de uma atitude nova em nossa cultura: queremos que nosso sofrimento psíquico deixe de ser um drama subjetivo, mas seja visto e vivido como um problema médico. Gostaríamos, em suma, de desistir da cansativa tarefa de mudar.
É frequente, por exemplo, encontrar indivíduos que se acham depressivos, decidem se curar e ficam literalmente na espera do efeito dos remédios. "Vou tomar Prozac", e com isso parece que não há mais nada a fazer. O recurso ao remédio dispensa a necessidade do esforço subjetivo. Não precisa fazer nada, é só se armar de paciência e esperar que a serotonina faça seu trabalho, assim como esperaríamos que a penicilina matasse os bacilos.
Certo: quem pedia Valium, Nembutal ou Simpamina confiava nas pílulas, mas também corria atrás de experiências novas.
Aos antidepressivos não é pedida nenhuma experiência extraordinária, só que tratem nosso mal-estar como se fosse uma disfunção do corpo. É uma espécie de círculo, pelo qual nossa época tem o remédio que merece.
Queremos desistir de ser sujeitos, isso nos deprime. Melhor dito, isso é a própria depressão: sermos reduzidos aos quilos de nossos corpos. Desistimos também dos esforços subjetivos para sair dessa e consequentemente pedimos uma medicação que funcione como se fosse para uma pneumonia. Inventamos uma: os antidepressivos. O círculo fecharia se não fosse o problema de os antidepressivos não serem nem de longe tão eficazes quanto os antibióticos.
Surpresa: I. Kirsch e G. Sapirstein publicaram no ano passado a análise de 19 experiências clínicas com antidepressivos. Concluíram que o efeito produzido pelos antidepressivos é, no mínimo, em 75% dos casos, um efeito placebo. Ou seja, uma substância inativa qualquer, (açúcar com farinha, por exemplo) administrada como se fosse um antidepressivo, produz quase os mesmos efeitos do que o remédio. No máximo, 25% do efeito medicamentoso dos antidepressivos poderia ser (eles não escrevem "é", mas "poderia ser") devido à medicação.
Agora a mesma equipe da Universidade de Connecticut acaba de revisar as experiências graças às quais o Prozac foi autorizado nos EUA. A conclusão é pior: 90% dos efeitos produzidos pela medicação seriam produzidos por um placebo.
Ironia: queremos ser curados de nossos males psíquicos como se fossem gripes. Pedimos antidepressivos para evitar complicados envolvimentos subjetivos (tentar mudar de vida, de idéias, de rumo, sei lá). Ora, descobre-se que o sucesso dos antidepressivos não depende de sua composição química, mas de nosso desejo de sermos curados -pois os placebos produzem os mesmos "milagres" que os remédios.
Decididamente, desistir de nossa subjetividade é mais difícil do que parece.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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