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LIVRO/LANÇAMENTO
Delegado Fleury é tema de relato prolixo em "Autópsia do Medo"
Folha Imagem
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Sérgio Paranhos Fleury, perseguidor de opositores ao regime militar, que agora ganha biografia |
MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL
O delegado Sergio Paranhos Fleury foi um brasileiro notável. Nos anos 70, seu nome
era imediatamente associado ao
Esquadrão da Morte e à tortura.
Ele foi o mais vistoso símbolo do
regime militar, inclusive no exterior: um tira especializado em espancar bandidos recebeu dos militares a missão de enfrentar o terrorismo de esquerda.
Fleury cumpriu a tarefa com eficácia. Matou Carlos Marighella
numa alameda de São Paulo. Participou do cerco ao capitão Carlos
Lamarca no sertão baiano. Adestrou o cabo Anselmo e o infiltrou
nas fileiras do inimigo. Teve um
papel preponderante na destruição dos grupos engajados na luta
armada.
Sob o seu comando, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, Dops,
tornou-se uma câmara de horrores. Pelo seu prédio, no bairro da
Luz, passaram milhares de "subversivos". Centenas deles foram
torturados por Fleury e sua equipe. Dezenas foram mortos e sumiram.
Na madrugada de 1º de maio de
1979, depois de ter se entupido de
uísque, Fleury tentou pular de um
barco para outro, em Ilhabela.
Caiu no mar, afogou-se e morreu
aos 44 anos. Seu caixão foi carregado pelo então governador Paulo Maluf e pelo hoje senador Romeu Tuma. Policiais e militares
acompanharam o enterro. Uma
salva de tiros foi disparada. Era
um herói do regime.
Em São Bernardo, na festa do 1º
de maio, a morte do delegado foi
saudada por milhares de pessoas
com uma paródia de "A Jardineira", a velha marchinha de Carnaval: "Ó repressão, por que estás
tão triste?/ Mas o que foi que te
aconteceu?/ Foi o Fleury que caiu
do barco/ Deu dois suspiros e depois morreu".
Percival de Souza se propôs a
contar essa vida espantosa em
"Autópsia do Medo - Vida e Morte do Delegado Sergio Paranhos
Fleury". Credenciais não lhe faltam. Repórter do "Jornal da Tarde", ele tem décadas de experiência na cobertura policial, acompanhou os processos contra o Esquadrão da Morte e conheceu
Fleury. Trabalhou dois anos no livro, tendo entrevistado a viúva do
biografado, sua amante, seus filhos, seus melhores amigos, muitos dos seus subordinados e vários de seus superiores.
"Autópsia do Medo" tem um
punhado de novidades e algumas
cenas de impacto. Infelizmente,
elas estão perdidas ao longo de
uma narrativa confusa e prolixa.
O livro avança e volta no tempo
sem avisar o leitor. A história se
enreda num sem-número de detalhes irrelevantes. Documentos
que nada têm a ver com o biografado são copiosamente transcritos.
Na interpretação de Percival de
Souza, Fleury foi produto da "cultura do pau" vigente na polícia.
Para obter confissões, policiais
"desciam o pau" em suspeitos de
cometer crimes comuns. Os choques elétricos, o pau-de-arara, a
cadeira do dragão, o espancamento, a detenção sem culpa formada -essa metodologia de
combate ao crime era a moeda
corrente desde os anos 50.
Fleury doutorou-se nessa escola, primeiro como aluno exemplar e depois como seu maior
mestre. Tanto que foi formalmente acusado de ter assassinado 22
das 69 vítimas do Esquadrão da
Morte em São Paulo. Graças a esse
currículo, os militares o chamaram para organizar a caça a terroristas quando houve os primeiros
atentados e assaltos a banco.
Na prática, Fleury virou o chefe
da repressão política. Por meio
dele, a "cultura do pau" entrou
nas Forças Armadas. Agradecidos, os militares tornaram-no
inimputável. Fizeram que, no
prazo recorde de um mês, fosse
aprovada a legislação que impedia a sua prisão devido aos processos pelos assassinatos do Esquadrão da Morte: a Lei Fleury.
Percival de Souza exemplifica a
onipotência do delegado ao contar uma reunião de militares e policiais para decidir se um determinado preso deveria ou não ser
morto: "Havia dúvida, a discussão se alongava. Fleury foi à cela
individual onde estava o preso,
colocou um silenciador na sua
pistola e desferiu um tiro certeiro.
Voltou à reunião e disse: não precisa mais discutir esse assunto. O
caso está resolvido".
Fleury participou também da
montagem da operação que fazia
os cadáveres de presos políticos
desaparecerem. Segundo Percival
de Souza, foi no Dops que se fez os
primeiro teste de corte dos dedos
de um preso, para evitar uma futura identificação. "Se o capturado já estava condenado, a mutilação poderia ser feita a sangue frio,
como parte do interrogatório",
escreve ele. Teria havido também
pelo menos dois casos de corte e
troca de cabeças de cadáveres.
O Segundo Exército encarregou
o delegado Romeu Tuma, chefe
do Serviço Secreto do Dops, de
nomear o delegado que deveria se
livrar dos terroristas mortos em
dependências policiais e militares
de São Paulo. Tuma indicou o delegado Alcides Cintra Bueno Filho, católico fervoroso. Foi ele o
responsável pelo enterro clandestino de dezenas de presos políticos, boa parte deles no cemitério
de Perus.
O retrato humano que "Autópsia do Medo" faz de Fleury é desbalanceado. A sua infância e adolescência cabem em dois mirrados parágrafos, e maior espaço é
dado à análise risível que uma psicóloga faz de sua mente. O pior é
que a psicóloga não conheceu e
muito menos atendeu Fleury. Ela
surge no livro porque morava
perto de um quartel que foi atacado por terroristas e ouviu o barulho da explosão.
Fleury aparece como um tira típico daquele período (e dos de
hoje também?): gostava de futebol
e bebida, só lia histórias em quadrinhos, divertia-se em boates e
botequins de quinta categoria,
onde se esbaldava com prostitutas, era violento, inculto, sádico,
autoritário e leal aos amigos.
Em 1976, Fleury foi seduzido e
se apaixonou pela advogada Leonora Rodrigues de Oliveira. Tornaram-se amantes. O delegado ficava mais na casa dela do que na
em que vivia com a mulher e os filhos. Escreveu cartas a ela mendigando atenção e carinho.
Percival de Souza revela que
Leonora era irmã de Raimundo
Rodrigues Pereira, um dos jornalistas de esquerda mais conhecidos do país, na época editor do semanário "Movimento", de oposição ao governo. A família da advogada era contra o namoro, mas
ela continuou ligada a Fleury até
sua morte.
É uma pena que "Autópsia do
Medo" seja um livro desconexo e
irritante. Desconexo porque entrevistas atravancam a narrativa,
pululam as informações inúteis
(como o nome completo e os apelidos das 69 vítimas do Esquadrão
da Morte), e a verborragia atrapalha o entendimento.
E irritante porque o autor repete
casos de maneira absurda. A informação de que Fleury andava
num Opala azul que tinha metralhadoras no chão e granadas no
porta-luvas aparece cinco vezes.
O endereço de Leonora Rodrigues é dado quatro vezes. A história de que ele namorava uma mulher casada com um seu colega
delegado aparece na página 101 e
reaparece na 482. O seu enterro é
contado no começo e no fim do livro.
Com isso, "Autópsia do Medo"
é um livro mais para especialistas
no período, que tenham paciência
para garimpar dados, do que para
os leitores interessados em conhecer o notável Sergio Paranhos
Fleury e sua época.
Autópsia do Medo - Vida e
Morte do Delegado Sergio
Paranhos Fleury
Autor: Percival de Souza
Editora: Globo
Quanto: R$ 44 (650 págs.)
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