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CULTURA
Gita Mehta retrata ocidentalização da Índia
ALVARO MACHADO
especial para a Folha
"Quando os tempos estão ruins, a
mente é levada à loucura."
Versos do épico hindu
"Ramayana"
A indiana de língua inglesa Gita
Mehta, 55, é dona
de uma metralhadora giratória verbal. Como suas colegas Camille Paglia e Marilena
Chauí, ela dispara num minuto
mais palavras cortantes e cheias
de "witty" do que uma simples fita cassete é capaz de registrar, tudo acompanhado de cascatas de
entrelinhas irônicas e olhares significativos. Seus livros, embora
não tão caudalosos e eruditos como os das autoras norte-americana e brasileira citadas, também se
encontram a serviço da polêmica.
As polêmicas inauguradas pela
escritora, jornalista e documentarista de cinema Gita Mehta tornaram-se clássicas já em seu primeiro livro, "Carma-Cola, o Marketing do Oriente Místico", que aparece agora em português pela
Companhia das Letras. Da mesma autora, a editora publicou "O
Monge Endinheirado, a Mulher
do Bandido e Outras Histórias de
um Rio Indiano" (contos) e "Escadas e Serpentes" (ensaios).
"Carma-Cola" permanece tão
original e fascinante quanto à
época de sua primeira publicação
em inglês, há 20 anos. O fenômeno que analisa, da busca de "iluminação espiritual" por hordas
de turistas ocidentais na culturalmente opulenta e materialmente
miserável Índia, nos anos 60 e 70,
é menosprezado pela sociologia,
mas suas marcas são visíveis, e
inesperadas sobrevidas dessa incursão continuam a irromper na
cultura ocidental, em arte, literatura e comportamento.
O livro documenta o lado obscuro desse processo de assimilação (acreditando-se que tenha havido de fato um lado iluminado),
ao longo do qual milhares de privilegiadas cabeças ocidentais rolaram na poeira da loucura e da
droga, ao mesmo tempo que um
sem-número de indianos deixou-se corromper por hábitos estranhos à sua tradição. "Carma-Cola" constitui, desse modo, um almanaque de perplexidades e
aberrações, e até mesmo de casos
escabrosos ao abrigo de uma gigantesca tenda oriental de falsos
milagres e uns poucos verdadeiros, porém logo esquecidos no
subcontinente indiano.
A "culpa", segundo Mehta, é
dos Beatles, que ouviram a cítara
encantada de Ravi Shankar e desembarcaram de surpresa em Nova Déli para se embriagar nas palavras do célebre guru Maharishi.
Aos quatro besouros cabeludos,
seguiram-se milhares de franceses, norte-americanos, ingleses e
alemães, cobiçosos de "narcose
química e religiosa e de poderes
sobrenaturais", o que em pouco
tempo legou à Índia uma bizarra
população flutuante ilegal de hippies mendicantes e uma inédita
fauna local de "sacerdotes fundamentalistas caçadores de butim,
barões da droga e homens santos
de mantos cor de açafrão que negociam armas".
Sempre ecoando o conhecido
vaticínio de Rudyard Kipling ("O
Oriente está a oriente e o Ocidente
está a ocidente, e os dois nunca
irão se encontrar"), a narrativa
desse novo desencontro entre
Oriente e Ocidente é estruturada
em cerca de cem tópicos livres,
numa colagem de dinâmica cinematográfica.
Embora verídicos, alguns casos
soam como anedotas de sabor
apimentado, em que a lascívia se
traveste ardilosamente em "prática sagrada", o que acaba conferindo à "Carma-Cola" os contornos
de um pequeno "Contos de Canterbury" de final do milênio.
Pois, nos paraísos de liberação
sexual de centenas de "ashrams"
(locais de retiro religioso) e praias
de nudismo inspiradas no tantrismo (esoterismo ritual que utiliza
o prazer sexual para atingir a comunhão com a divindade), sucedem-se casos como o das freiras
católicas convertidas às filosofias
locais, para acabar servindo carnalmente a ocidentais encantados
com mais essa idéia de desrecalque de sua moral; ou dos bacanais
nas praias de Goa, que durante
anos constrangeram autoridades
e atraíram milhares de turistas indianos, até serem banidas.
Mehta faz pausa no tom satírico
para descrever, por outro lado, os
verdadeiros "sadhus" (homens
santos) em confrontos impressionantes com atônitas "crianças"
ocidentais. Também dá trégua à
ironia para semear, aqui e ali, análises cartesianas sobre as diferenças de psicologia entre os dois hemisférios.
Curiosamente, dois anônimos
brasileiros são destacados, logo às
primeiras linhas e no capítulo final do volume. Ambos naufragam na mesma barca furada dos
europeus, aos quais, aliás, vendem-se sexualmente. Esses "índios indianos" são tratados, porém, com simpatia pela autora, e a
beleza e dignidade do segundo,
um ex-padre vagando nu na praia
de Anjuna, merecem uma comparação com o deus Krishna.
O turismo na Índia de hoje é
sensivelmente diferente. Os gurus
mais influentes morreram (entre
eles, Bhagwan Rajneesh), foram
desacreditados ou passaram a
atuar no Ocidente. Uma parcela
menor do contingente hippie foi
substituída por adeptos da música trance, que circulam na costa
meridional, mas, no cômputo geral, o perfil do visitante se modificou inteiramente, frente a preços
não tão modestos quanto os de
outrora e novas estruturas hoteleiras, de um luxo que só a Índia
do "Kama Sutra" sabe proporcionar. Nas praças de Kathmandu
(atual Nepal), a poluição não mais
favorece ao ocidental em busca de
"nirvana instantâneo" engolir o
seu biscoito de haxixe.
Os tempos são outros. Ainda assim, o livro de maior sucesso de
Gita Mehta continua interessando o leitor, com sua abordagem
aplicada, franca e um tanto "careta" de um dos mais estranhos fenômenos de comportamento do
século que se encerra no final do
ano 2000.
Avaliação:
Livro: Carma-Cola, o Marketing do
Oriente Místico
Autora: Gita Mehta
Tradutor: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 23 (200 págs.)
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