São Paulo, Sábado, 25 de Dezembro de 1999


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CULTURA

Gita Mehta retrata ocidentalização da Índia

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

 "Quando os tempos estão ruins, a mente é levada à loucura."
Versos do épico hindu
"Ramayana"


A indiana de língua inglesa Gita Mehta, 55, é dona de uma metralhadora giratória verbal. Como suas colegas Camille Paglia e Marilena Chauí, ela dispara num minuto mais palavras cortantes e cheias de "witty" do que uma simples fita cassete é capaz de registrar, tudo acompanhado de cascatas de entrelinhas irônicas e olhares significativos. Seus livros, embora não tão caudalosos e eruditos como os das autoras norte-americana e brasileira citadas, também se encontram a serviço da polêmica.
As polêmicas inauguradas pela escritora, jornalista e documentarista de cinema Gita Mehta tornaram-se clássicas já em seu primeiro livro, "Carma-Cola, o Marketing do Oriente Místico", que aparece agora em português pela Companhia das Letras. Da mesma autora, a editora publicou "O Monge Endinheirado, a Mulher do Bandido e Outras Histórias de um Rio Indiano" (contos) e "Escadas e Serpentes" (ensaios).
"Carma-Cola" permanece tão original e fascinante quanto à época de sua primeira publicação em inglês, há 20 anos. O fenômeno que analisa, da busca de "iluminação espiritual" por hordas de turistas ocidentais na culturalmente opulenta e materialmente miserável Índia, nos anos 60 e 70, é menosprezado pela sociologia, mas suas marcas são visíveis, e inesperadas sobrevidas dessa incursão continuam a irromper na cultura ocidental, em arte, literatura e comportamento.
O livro documenta o lado obscuro desse processo de assimilação (acreditando-se que tenha havido de fato um lado iluminado), ao longo do qual milhares de privilegiadas cabeças ocidentais rolaram na poeira da loucura e da droga, ao mesmo tempo que um sem-número de indianos deixou-se corromper por hábitos estranhos à sua tradição. "Carma-Cola" constitui, desse modo, um almanaque de perplexidades e aberrações, e até mesmo de casos escabrosos ao abrigo de uma gigantesca tenda oriental de falsos milagres e uns poucos verdadeiros, porém logo esquecidos no subcontinente indiano.
A "culpa", segundo Mehta, é dos Beatles, que ouviram a cítara encantada de Ravi Shankar e desembarcaram de surpresa em Nova Déli para se embriagar nas palavras do célebre guru Maharishi. Aos quatro besouros cabeludos, seguiram-se milhares de franceses, norte-americanos, ingleses e alemães, cobiçosos de "narcose química e religiosa e de poderes sobrenaturais", o que em pouco tempo legou à Índia uma bizarra população flutuante ilegal de hippies mendicantes e uma inédita fauna local de "sacerdotes fundamentalistas caçadores de butim, barões da droga e homens santos de mantos cor de açafrão que negociam armas".
Sempre ecoando o conhecido vaticínio de Rudyard Kipling ("O Oriente está a oriente e o Ocidente está a ocidente, e os dois nunca irão se encontrar"), a narrativa desse novo desencontro entre Oriente e Ocidente é estruturada em cerca de cem tópicos livres, numa colagem de dinâmica cinematográfica.
Embora verídicos, alguns casos soam como anedotas de sabor apimentado, em que a lascívia se traveste ardilosamente em "prática sagrada", o que acaba conferindo à "Carma-Cola" os contornos de um pequeno "Contos de Canterbury" de final do milênio.
Pois, nos paraísos de liberação sexual de centenas de "ashrams" (locais de retiro religioso) e praias de nudismo inspiradas no tantrismo (esoterismo ritual que utiliza o prazer sexual para atingir a comunhão com a divindade), sucedem-se casos como o das freiras católicas convertidas às filosofias locais, para acabar servindo carnalmente a ocidentais encantados com mais essa idéia de desrecalque de sua moral; ou dos bacanais nas praias de Goa, que durante anos constrangeram autoridades e atraíram milhares de turistas indianos, até serem banidas.
Mehta faz pausa no tom satírico para descrever, por outro lado, os verdadeiros "sadhus" (homens santos) em confrontos impressionantes com atônitas "crianças" ocidentais. Também dá trégua à ironia para semear, aqui e ali, análises cartesianas sobre as diferenças de psicologia entre os dois hemisférios.
Curiosamente, dois anônimos brasileiros são destacados, logo às primeiras linhas e no capítulo final do volume. Ambos naufragam na mesma barca furada dos europeus, aos quais, aliás, vendem-se sexualmente. Esses "índios indianos" são tratados, porém, com simpatia pela autora, e a beleza e dignidade do segundo, um ex-padre vagando nu na praia de Anjuna, merecem uma comparação com o deus Krishna.
O turismo na Índia de hoje é sensivelmente diferente. Os gurus mais influentes morreram (entre eles, Bhagwan Rajneesh), foram desacreditados ou passaram a atuar no Ocidente. Uma parcela menor do contingente hippie foi substituída por adeptos da música trance, que circulam na costa meridional, mas, no cômputo geral, o perfil do visitante se modificou inteiramente, frente a preços não tão modestos quanto os de outrora e novas estruturas hoteleiras, de um luxo que só a Índia do "Kama Sutra" sabe proporcionar. Nas praças de Kathmandu (atual Nepal), a poluição não mais favorece ao ocidental em busca de "nirvana instantâneo" engolir o seu biscoito de haxixe.
Os tempos são outros. Ainda assim, o livro de maior sucesso de Gita Mehta continua interessando o leitor, com sua abordagem aplicada, franca e um tanto "careta" de um dos mais estranhos fenômenos de comportamento do século que se encerra no final do ano 2000.

Avaliação:    


Livro: Carma-Cola, o Marketing do Oriente Místico
Autora: Gita Mehta
Tradutor: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 23 (200 págs.)



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