São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Quanto pior, melhor


O slogan "socialismo ou barbárie" nasceu do pessimismo que supunha que tudo tende a piorar


TROTSKISTA MILITANTE na virada dos anos 70/80, eu compartilhava uma visão da realidade com os "companheiros". Por exemplo: apoiei entusiástico a revolução nicaragüense, não apenas satisfeito em ver uma ditadura hereditária de direita ser derrotada e, pouco depois, o longo braço da vingança ou da justiça (tanto fazia, tanto faz) alcançar o próprio ditador refugiado então numa ditadura irmã, a paraguaia, como apostando minhas fichas no governo sucessor.
É verdade que, ao contrário do que sucedia com meus correligionários, embora tivesse acompanhado a concomitante deposição do xá do Irã, já não me alegrara tanto com os aiatolás que o substituíram. Se bem que meus amigos me garantissem que, por trás da fachada reacionária, a revolução islâmica, mais revolução que islâmica, era o progresso disfarçado de clericalismo, o futuro da região não me cheirava bem.
Tendo em vista tais desconfianças, não é à toa que, quando pus em dúvida "nossa" interpretação da Guerra das Malvinas (aquela segundo a qual a junta argentina, compelida a assumir causas populares, acabara a contragosto na vanguarda do anti-imperialismo), meus companheiros cassaram-me a carteirinha metafórica. E isso malgrado minha folha de serviços à "causa" incluir a conquista de um centro acadêmico valioso e a expulsão dali do MR8.
Quem não militou na época ou antes talvez ignore a diversidade não raro conflituosa que, caracterizando outrora a esquerda, configurava-se numa hierarquia complexa. Cada facção, é claro, via as demais como inimigas piores que a burguesia ou o regime, mas todas também julgavam umas às outras de acordo com critérios de proximidade ou distância vertical.
Trotskistas se julgavam, em termos de refinamento teórico, os habitantes do topo, superados apenas por alguns anarquistas e conselhistas do abstrato andar de cima. Qualquer esquerdista pensante (algo que existia ainda) via aos maoístas como uma ralé, o lumpesinato da revolução. Se os comunistas propriamente ditos chegavam a ser bons organizadores, na hora de discutir, só eram capazes de recitar a cartilha decorada. A principal divisão, no entanto, apartava os "de dentro" da "massa de manobra". Nem sequer um trotskista desta última categoria passava de um coitado e era inferior, inclusive, a um maoísta, desde que este fosse um "insider".
O grau de parentesco partidário ditava quanto as cabeças individuais tinham em comum. Seja como for, o que nos unia a todos era, por um lado, uma avaliação mais ou menos comum dos problemas presentes e suas raízes e, por outro, aspirações não menos semelhantes para o porvir do país e da humanidade. Se as idéias sobre a cultura oscilavam do socialismo realista enfiado garganta abaixo até, passando por um dirigismo benevolente, a defesa da liberdade de criação, ninguém relegava as artes ao segundo plano. E concordávamos em geral que, salvo se o obscurantismo fascista retornasse, com o tempo mais gente procuraria produtos culturais superiores.
Não é necessário, contudo, ter um dia se associado a esse espírito para se sentir desenganado com o rumo que as coisas tomaram, rumo em boa parte escolhido e orientado pelo pessoal descrito acima e/ou seus herdeiros diretos. "Socialismo ou barbárie", um dos slogans mais famosos do século passado, nascera do pessimismo que, apocalíptico, supunha que, por conta própria, tudo tende a piorar e, portanto, é apenas uma vontade alternativa que, posta em prática, pode salvar o mundo do desastre. Se tal viés perdura, com o intuito de chantagear a sociedade ou restaurar o paleolítico, na propaganda do fundamentalismo ecológico, a maioria optou pelo otimismo pavloviano que aboliu por decreto as ameaças muitíssimo reais de barbárie.
A generalização dessa concepção data de 1989, ano em que a resolução inesperadamente pacífica da Guerra Fria levou a história das décadas anteriores a ser reescrita com a supressão dos perigos recentes e sua memória. Assim, para um dos lados, a Guerra Fria não foi somente ganha, ela foi riscada dos livros (como, aliás, a Segunda Guerra está sendo agora). Quem não a esqueceu, todavia, foram seus perdedores, que traduziram a frase atribuída a Rosa Luxemburgo de maneira revanchista: "Caso vocês não aceitem nosso socialismo, instauraremos a barbárie". Com o sucesso, este ano, de seu projeto, é pouco provável que o abandonem em 2007.


Texto Anterior: HQ retrata vinda de Debret ao Brasil
Próximo Texto: Cinema: Gus Van Sant é preso por beber e dirigir
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.