São Paulo, sábado, 25 de dezembro de 2010

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CRÍTICA POESIA

Obra de angolano refaz epopeia de "Os Lusíadas"

Gonçalo M. Tavares se firma em livro que é como oráculo pós-moderno


ELE É O PORTUGUÊS QUE NAVEGA OS MALES DO SÉCULO COMO SE FOSSEM O ÚNICO OCEANO PASSÍVEL DE SE ENFRENTAR


JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

O angolano Gonçalo M. Tavares é unanimidade crítica na literatura de expressão portuguesa, da qual talvez seja o autor cujo reconhecimento se expanda além das fronteiras da língua de modo mais conclusivo.
Temos outros campeões, cá e lá, mas nenhum de êxito internacional tão evidente ou de repercussão tão unívoca e sorrateira quanto a de Tavares, nascido em 1970 e dono de surpreendentes 27 títulos até o momento.
Seu livro "Uma Viagem à Índia", lançado simultaneamente em Portugal e no Brasil, além da obra-prima inquestionável que é, surge como oportunidade para refletir acerca dessa transmigração oriental do criador e de sua criatura.
Com prefácio do ensaísta Eduardo Lourenço, "Uma Viagem à Índia" é um poema livre com dez cantos que se estende por 452 páginas. Os números podem assustar, mas não deveriam.
Absolutamente legíveis e propulsionadas por narrativa de motor incessante, cantam as aventuras e desventuras de Bloom. Ele é o português que, ao repetir a viagem de "Os Lusíadas", navega os males do século como se fossem o único oceano passível de se enfrentar na modernidade.
Nele, o erotismo, a crueldade e a solidão, entre outros tópos contemporâneos, cumprem o papel de hidras e de monstros marinhos a serem vencidos.
Bloom é o arquétipo do homem moderno safra século 21 (o pesadelo da história pela qual atravessa ocorre em 2003). Com isso, é obrigado a sobrepujar obstáculos econômicos e amorosos ao modo dos desafios éticos e morais desses tempos amorfos.
"Uma Viagem à Índia", como afirma Eduardo Lourenço, "não recomeça em tempos outros a eterna busca do Oriente, mas tenta proeza mais temerosa, a da re-escrita da aventura verbal onde ela está consagrada, como a de Homero para Joyce".

ILUMINAÇÃO
Herói picaresco contra todos os ardis, Bloom termina por burlar sua própria epopeia, "ao fim e ao cabo, a não-viagem que nós próprios somos".
Dono de estilo indelevelmente sugestivo, os cantos de "Uma Viagem à Índia" fornecem imagens e frases (que funcionam como aforismos) aos borbotões.
Mas citá-las aqui não seria suficiente para dar mostras de seu poder encantatório.
Como um oráculo pós-moderno, basta abrir o livro em qualquer página para se obter a iluminação: "A boa imagem do coração deve-se, em grande parte, ao seu bom esconderijo". Ou: "No erotismo o que importa é no corpo da amada não existir saída".
E por aí vai, incessantemente como o mar, o pensamento acerca dessa antítese entre corpo e multidão.
Com "Uma Viagem à Índia", Gonçalo M. Tavares se consagra como um escritor imprescindível.

JOCA REINERS TERRON é autor de "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (Cia. das Letras)

UMA VIAGEM À ÍNDIA

AUTOR Gonçalo M. Tavares
EDITORA Leya Brasil
QUANTO R$ 44,90 (480 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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