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DRAUZIO VARELLA
Compulsões comportamentais
Para o cérebro, toda recompensa é bem-vinda, venha
ela de uma droga ilícita ou da experiência vivida. Com esta frase,
começamos o último artigo publicado nesta coluna. Nele, dissemos
que existem circuitos de neurônios que convergem para determinados centros cerebrais encarregados de reconhecer e integrar
as sensações de prazer, localizados nas imediações dos centros
que coordenam memórias e emoções.
Quando estimulados repetidamente, os neurônios envolvidos
na recompensa que o prazer traz
transmitem a informação para os
neurônios situados no chamado
centro da busca, com o objetivo de
provocar alterações comportamentais para induzir o corpo a ir
atrás da situação responsável por
aquele prazer.
Na evolução dos seres mais
complexos, esse mecanismo foi selecionado para obrigar os animais a buscarem o prazer. O centro da busca surgiu para forçar a
repetição das recompensas ligadas à satisfação de sensações como a fome, o desejo sexual, a temperatura mais adequada ao funcionamento do organismo ou a
tranquilidade de viver distante
dos predadores, experiências do
dia-a-dia diretamente associadas
à sobrevivência da espécie.
O que milhões de anos de seleção natural não puderam prever
é que, às custas de substâncias
químicas ou alterações comportamentais repetitivas, a espécie humana subvertesse o mecanismo
de busca e recompensa, a ponto
de escravizar o indivíduo a viver
compulsivamente atrás de um
prazer que muitas vezes até deixou de existir.
No artigo anterior, mostramos
como as drogas psicoativas são
capazes de sequestrar os circuitos
cerebrais de busca e recompensa,
induzindo a comportamentos autodestrutivos ininteligíveis para
os não-dependentes delas. Hoje,
mostraremos a semelhança desse
mecanismo farmacológico com
aquele associado às alterações
comportamentais.
Constance Holden, editora da
revista "Science", diz que a desordem comportamental mais semelhante à da adição às drogas é o
vício do jogo. Pode alguém que
não goste de jogar entender o que
leva uma pessoa a passar a noite
inteira numa roda de baralho e
nela perder o salário do mês, sempre na esperança de que a sorte
virá na próxima rodada?
Estudos mostram que mais da
metade dos jogadores apresentam sintomas de abstinência menos intensos, porém muito semelhantes aos dos usuários de drogas: distúrbios de sono, irritabilidade, sudorese e hiperexcitabilidade que se acalma diante da
mesa de jogo. Além disso, estão
sujeitos a recaídas mesmo depois
de anos de abstinência.
Pesquisadores da Universidade
de Yale fizeram um estudo com
jogadores colocados diante de um
vídeo com imagens de pessoas jogando e falando de jogo. Através
de um exame chamado ressonância magnética funcional, capaz
de mapear as áreas cerebrais que
estão em atividade mais intensa
naquele momento, os autores verificaram que, ao assistir ao vídeo, entram em atividade no cérebro do jogador áreas do lobo
frontal e do sistema límbico idênticas às dos usuários de cocaína
colocados diante da droga.
Medicamentos como a naltrexona, que bloqueiam o "barato"
proporcionado por diversas drogas, são capazes de inibir a compulsão pelo jogo, como demonstrou um estudo conduzido na
Universidade de Minnesota, sugerindo um mecanismo comum
de neuroadaptação às drogas e à
compulsão pelo jogo.
Há evidências claras de que mecanismos semelhantes estejam
envolvidos em indivíduos que comem compulsivamente. Estudos
mostram, por exemplo, que no cérebro de certas pessoas obesas
existe deficiência de dopamina,
um neurotransmissor essencial
para a sensação de prazer. É possível que elas comam exageradamente para compensar a baixa
atividade dos circuitos cerebrais
responsáveis pelo prazer ligado à
alimentação, consequente à falta
de dopamina. Déficit de dopamina é uma anomalia encontrada
com frequência em dependentes
de cocaína.
Talvez a semelhança dos mecanismos patológicos, ligados à baixa produção de dopamina, explique os altos índices de recaídas
entre os usuários crônicos de cocaína e entre os obesos que fazem
regimes para perder peso.
Os compradores compulsivos
capazes de adquirir tudo o que está nas vitrinas, mesmo sem ter como pagar, sofrem de distúrbio semelhante. Vão às compras com
sofreguidão, geralmente induzidos por quadros de depressão e
ansiedade. No momento em que
estão comprando, experimentam
sensações de excitação muito semelhantes às das provocadas pela
cocaína ou pela maconha; depois,
caem em depressão, fadiga e sentimento de culpa, exatamente como os usuários de droga.
Cleptomania, ingestão de grandes quantidades de chocolate,
comportamento sexual compulsivo e mesmo a prática exagerada
de esportes como correr, andar de
bicicleta ou levantar peso são alterações comportamentais que
acontecem graças à ativação repetitiva de circuitos cerebrais comuns àqueles estimulados quimicamente pelo uso de substâncias
psicoativas. A diferença é apenas
quantitativa: a concentração de
dopamina associada ao uso de
droga é pelo menos duas a cinco
vezes mais elevada do que a
quantidade desse mediador do
prazer liberada através dos comportamentos compulsivos citados.
A semelhança fisiológica das
modificações bioquímicas que
ocorrem nos circuitos cerebrais
dos portadores de distúrbios compulsivos e dos usuários de drogas
psicoativas explica porque as
compulsões comportamentais
muitas vezes conduzem à dependência química. Explica, também, porque o uso abusivo de
uma droga ou a repetição compulsiva de determinado comportamento abaixa o limiar para o
desenvolvimento de outras dependências.
No próximo número desta coluna, vamos explicar como as drogas e os comportamentos compulsivos sequestram os circuitos de
neurônios responsáveis pela memória e pelas motivações comportamentais.
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