São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2002

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DRAUZIO VARELLA

Compulsões comportamentais

Para o cérebro, toda recompensa é bem-vinda, venha ela de uma droga ilícita ou da experiência vivida. Com esta frase, começamos o último artigo publicado nesta coluna. Nele, dissemos que existem circuitos de neurônios que convergem para determinados centros cerebrais encarregados de reconhecer e integrar as sensações de prazer, localizados nas imediações dos centros que coordenam memórias e emoções.
Quando estimulados repetidamente, os neurônios envolvidos na recompensa que o prazer traz transmitem a informação para os neurônios situados no chamado centro da busca, com o objetivo de provocar alterações comportamentais para induzir o corpo a ir atrás da situação responsável por aquele prazer.
Na evolução dos seres mais complexos, esse mecanismo foi selecionado para obrigar os animais a buscarem o prazer. O centro da busca surgiu para forçar a repetição das recompensas ligadas à satisfação de sensações como a fome, o desejo sexual, a temperatura mais adequada ao funcionamento do organismo ou a tranquilidade de viver distante dos predadores, experiências do dia-a-dia diretamente associadas à sobrevivência da espécie.
O que milhões de anos de seleção natural não puderam prever é que, às custas de substâncias químicas ou alterações comportamentais repetitivas, a espécie humana subvertesse o mecanismo de busca e recompensa, a ponto de escravizar o indivíduo a viver compulsivamente atrás de um prazer que muitas vezes até deixou de existir.
No artigo anterior, mostramos como as drogas psicoativas são capazes de sequestrar os circuitos cerebrais de busca e recompensa, induzindo a comportamentos autodestrutivos ininteligíveis para os não-dependentes delas. Hoje, mostraremos a semelhança desse mecanismo farmacológico com aquele associado às alterações comportamentais.
Constance Holden, editora da revista "Science", diz que a desordem comportamental mais semelhante à da adição às drogas é o vício do jogo. Pode alguém que não goste de jogar entender o que leva uma pessoa a passar a noite inteira numa roda de baralho e nela perder o salário do mês, sempre na esperança de que a sorte virá na próxima rodada?
Estudos mostram que mais da metade dos jogadores apresentam sintomas de abstinência menos intensos, porém muito semelhantes aos dos usuários de drogas: distúrbios de sono, irritabilidade, sudorese e hiperexcitabilidade que se acalma diante da mesa de jogo. Além disso, estão sujeitos a recaídas mesmo depois de anos de abstinência.
Pesquisadores da Universidade de Yale fizeram um estudo com jogadores colocados diante de um vídeo com imagens de pessoas jogando e falando de jogo. Através de um exame chamado ressonância magnética funcional, capaz de mapear as áreas cerebrais que estão em atividade mais intensa naquele momento, os autores verificaram que, ao assistir ao vídeo, entram em atividade no cérebro do jogador áreas do lobo frontal e do sistema límbico idênticas às dos usuários de cocaína colocados diante da droga.
Medicamentos como a naltrexona, que bloqueiam o "barato" proporcionado por diversas drogas, são capazes de inibir a compulsão pelo jogo, como demonstrou um estudo conduzido na Universidade de Minnesota, sugerindo um mecanismo comum de neuroadaptação às drogas e à compulsão pelo jogo.
Há evidências claras de que mecanismos semelhantes estejam envolvidos em indivíduos que comem compulsivamente. Estudos mostram, por exemplo, que no cérebro de certas pessoas obesas existe deficiência de dopamina, um neurotransmissor essencial para a sensação de prazer. É possível que elas comam exageradamente para compensar a baixa atividade dos circuitos cerebrais responsáveis pelo prazer ligado à alimentação, consequente à falta de dopamina. Déficit de dopamina é uma anomalia encontrada com frequência em dependentes de cocaína.
Talvez a semelhança dos mecanismos patológicos, ligados à baixa produção de dopamina, explique os altos índices de recaídas entre os usuários crônicos de cocaína e entre os obesos que fazem regimes para perder peso.
Os compradores compulsivos capazes de adquirir tudo o que está nas vitrinas, mesmo sem ter como pagar, sofrem de distúrbio semelhante. Vão às compras com sofreguidão, geralmente induzidos por quadros de depressão e ansiedade. No momento em que estão comprando, experimentam sensações de excitação muito semelhantes às das provocadas pela cocaína ou pela maconha; depois, caem em depressão, fadiga e sentimento de culpa, exatamente como os usuários de droga.
Cleptomania, ingestão de grandes quantidades de chocolate, comportamento sexual compulsivo e mesmo a prática exagerada de esportes como correr, andar de bicicleta ou levantar peso são alterações comportamentais que acontecem graças à ativação repetitiva de circuitos cerebrais comuns àqueles estimulados quimicamente pelo uso de substâncias psicoativas. A diferença é apenas quantitativa: a concentração de dopamina associada ao uso de droga é pelo menos duas a cinco vezes mais elevada do que a quantidade desse mediador do prazer liberada através dos comportamentos compulsivos citados.
A semelhança fisiológica das modificações bioquímicas que ocorrem nos circuitos cerebrais dos portadores de distúrbios compulsivos e dos usuários de drogas psicoativas explica porque as compulsões comportamentais muitas vezes conduzem à dependência química. Explica, também, porque o uso abusivo de uma droga ou a repetição compulsiva de determinado comportamento abaixa o limiar para o desenvolvimento de outras dependências.
No próximo número desta coluna, vamos explicar como as drogas e os comportamentos compulsivos sequestram os circuitos de neurônios responsáveis pela memória e pelas motivações comportamentais.



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