São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2000


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PATRULHA DA FUMAÇA
Com sete indicações ao Oscar, "O Informante" dá duro golpe no "affaire" cinema-cigarro
Hollywood dá suas últimas baforadas

FERNANDO MORGADO
especial para a Folha

"O Informante", que estreou ontem, vai se tornar um marco histórico: é o primeiro a anunciar o fim de um romance de quase 100 anos entre Hollywood e o cigarro. O rompimento promete ser definitivo, pois não se trata de exemplar barato, feito às pressas, para explorar a guerra mundial e sem trégua contra o fumo.
O cinema americano, como poucos, sabe se adaptar instantaneamente às novas tendências, à moda do momento, para ganhar dinheiro. Não é o caso deste filme, feito com orçamento de milhões de dólares, elenco de grandes astros, diretor do primeiro time, saudado com entusiasmo pela crítica estrangeira e indicado para sete Oscar.
Nestes vigilantes e geralmente puros ares de véspera de milênio, o importante não é apenas o esotérico "politicamente correto", mas, principalmente, pulmão e mente saudáveis.
Estrelado por Al Pacino e Russell Crowe, "O Informante" é baseado em história real e recente na vida americana; vem causando comoção e repercussão onde é exibido. A denúncia que o filme mostra custou bilhões de dólares à indústria do fumo e se tornou uma bola não de neve, mas de fogo, que, montanha abaixo, vai transformando em cinzas reputações até então inatingidas e segredos bem guardados do cada vez mais abalado poderio dos fabricantes de cigarro.
O homem que revelou tudo é Jeffrey Wigand (vivido por Crowe), o mais graduado executivo da indústria de cigarro americana a denunciar ao mundo os perigos do fumo e as manipulações por trás da química usada na fabricação. Executivo da poderosa Brown e Williamson, fabricante, entre outros, da marca Lucky Strike, ele aceitou testemunhar contra sua empresa diante de um comitê do governo americano contra os fabricantes de cigarro.
Ameaçada pelas revelações de Wigand, que conhecia como poucos os bastidores do fumo, a indústria contra-atacou, numa campanha implacável -ele quase teve sua reputação profissional e sua vida particular destruídas para sempre.
Na sua descida destruidora, a bola de fogo das denúncias deixou profundas cicatrizes na credibilidade da rede de televisão CBS e nos diretores de um dos programas jornalísticos mais respeitados dos EUA, o "60 Minutes".
Lowell Bergman (Al Pacino), um dos editores do programa, quase entra em êxtase quando descobre que Wigand, até então o maior e mais importante "insider" da indústria, está disposto a fazer as denúncias contra seus poderosos patrões. A luta implacável de Bergman, seus artifícios para conseguir a entrevista reveladora com Wigand, as ameaças de vários setores contra eles, fazem do filme, emocionante e revelador espetáculo.
Então, surge a primeira e inesperada derrota. Com o maior dos peixes e a entrevista já nas mãos, Bergman recebe duro golpe quando a direção da emissora, temendo o poderio e ameaças de processos milionários da indústria, não permite que a entrevista vá ao ar. O golpe mais profundo, porém, atingiu o prestígio e a respeitabilidade da CBS. A estrela do programa, Mike Wallace (Christopher Plummer), também sai abalado em sua imagem no final.
Durante décadas, cinema e fumo estiveram ligados não só pelo vício, mas por romantismo e coração. O cigarro, o charuto, o cachimbo desempenharam papel tão importante nos filmes como os próprios intérpretes.
O cigarro, quase sempre, simbolizava, na tela, tensão, nervosismo; o charuto, autoridade, prepotência ou corrupção, e o cachimbo era privilégio de intelectuais, liberais e bons sujeitos em geral.
De vez em quando, um argumentista mais criativo transformava o cigarro num instrumento de amor tão convincente que o mundo inteiro fazia o mesmo.
Foi o que aconteceu 57 anos atrás, no filme "A Estranha Passageira" (Now, Voyager), quando Paul Henreid acendeu dois cigarros na boca e entregou um a sua apaixonada Bette Davis. O gesto causou tanto impacto que foi copiado nos quatro cantos da Terra. O comediante Bob Hope, um ano depois, em 43, em "O Caradura" (Let's Face It), satirizou a cena famosa acendendo ao mesmo tempo nada menos que oito cigarros.
Esse tabagismo romântico é coisa do passado. Neste perigoso e ameaçador fim de milênio, o cinema não tem mais com o fumo qualquer relação de amor. O importante agora é o pulmão, a saúde; alertar o mundo para os malefícios do tabagismo. John Wayne, que consumia cinco maços de cigarros por dia, abandonou o vício, ameaçado por um câncer.
Lutou bravamente contra ele durante anos, até sucumbir. Humphrey Bogart, que fumava como poucos na tela e fora dela, teve o mesmo fim. O caso mais dramático de astro perdendo a batalha contra o grande vilão do fumo foi o de Yul Brynner que, ao descobrir que estava morrendo, com o pulmão destroçado, decidiu participar de uma cruzada nacional, advertindo os americanos para não acabar a vida como ele.
Hollywood está reagindo a esta recente batalha antitabagismo como sempre reagiu: espertamente. Se a moda agora é esta, a dos pulmões corretos e saudáveis, vamos aderir, nada de desafiar a maioria.
E quem melhor do que o cinema para doutrinar e conscientizar o mundo sobre os riscos do cigarro? O mesmo cigarro que, no passado, esteve entre seus astros mais importantes, copiados e lucrativos, pelos sutis e às vezes não tão sutis caminhos do marketing da indústria do fumo.
Alfred Hitchcock criou em seu "Ladrão de Casaca" uma cena inesquecível, e repelente, quando a cínica Jessie Royce Landis, vivendo a mãe de Grace Kelly, apaga seu cigarro num resto da gema de ovo no prato. Audrey Hepburn até hoje é ícone de sofisticação e imitação, com sua clássica imagem dos anos 60, de óculos escuros, chapéu e longa piteira, no filme "Bonequinha de Luxo".
Mark Morris, do jornal inglês "The Observer", cita pesquisa do "USA Today" que concluiu que 56% dos filmes produzidos em 96 tinham cenas de alguém fumando. Morris lembra com humor e cinismo o papel estratégico do cigarro no cinema: se não houvesse alguém com cigarro à mão, como acender a dinamite para mandar os vilões para os ares, como Clint Eastwood fez tantas vezes nos faroestes, com seus charutos presos entre os dentes?
Outro filme denunciando a indústria e seus sinistros bastidores é "Runaway Jury", baseado em história de John Grisham. O tema é sobre uma poderosa indústria do tabaco que se vê em apuros por causa de denúncias e suborna jurados num julgamento contra ela. As filmagens chegaram a ser iniciadas em 1998, com elenco de astros: Sean Connery, Gwyneth Paltrow e Edward Norton.
Mas algo saiu errado -não, pelo que sabe, por culpa dos fabricantes de cigarro, mas porque os produtores alegaram que o interesse do grande público nos livros de Grisham ("A Firma") vem caindo cada vez mais.
Temendo prejuízo, decidiram adiar e arquivar o projeto. Mas, tendo investido 8 milhões de dólares somente em direitos autorais, a Warner mais cedo ou mais tarde deverá reiniciar as filmagens. Um dos motivos é bem hollywoodiano: há anos o cinema americano não tinha a sua disposição vilão tão ameaçador, real e, espera-se, tão promissor e duradouro nas bilheterias como o cigarro.


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