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São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 2003

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CRÍTICA

Roteiro afasta filme e personagens da vida corrente

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "As Horas" praticamente todos os estágios da produção literária estão compreendidos na história de três mulheres.
Existe primeiro Virginia Woolf, a escritora, vivendo num vilarejo britânico, em 1941 (ou antes, morrendo: o filme se abre com seu suicídio). Depois há, no presente, Clarissa, editora, ex-mulher de Richard, escritor com Aids à beira da morte e que acaba, claro, de ganhar um grande prêmio literário. Richard chama Clarissa de senhora Dalloway. Existe, por fim, Laura, dona-de-casa e leitora de "Mrs. Dalloway", o romance publicado por Virginia Woolf em 1925.
Escritores sofrem. São seres incomuns, incompreendidos pelo vulgo porque encaram a vida de frente. É esse o lugar-comum desenvolvido basicamente pelo filme de Stephen Daldry.
Talvez o romance de Michael Cunningham que o filme toma por base quisesse dizer que não há pessoas incomuns. Escritores, editores e leitores expressam, cada um a seu modo, seus dramas e maneiras de encarar o mundo.
Mas Stephen Daldry acredita nos seres especiais. Ou, em todo caso, faz deles seu ponto de venda. Foi assim com "Billy Elliot", o menino bailarino que vicejava no meio operário. Podia-se pensar que, ali, Daldry já havia feito bobagem para uma vida inteira.
Ledo engano. Com "As Horas" as coisas pioram bastante -e nem estou falando da música de Philip Glass, capaz de enlouquecer um vivente já nos primeiros 15 minutos de projeção.
Antes disso existe esse tom sorumbático que não se refere tanto aos personagens e às suas circunstâncias quanto à vida intelectual propriamente dita. Daldry não procura nos dizer que a escrita é um mal do qual devemos manter distância. O fato, no entanto, é que em seu filme escrever (e ler, que no limite é a mesma coisa) nos afasta da vida corrente e nos faz, com isso, mais suscetíveis à incompreensão (além de, parece, necessariamente bissexuais).
Seria injusto com "As Horas" negar que no roteiro -pontilhado de literatice- não existam dois ou três momentos fortes. Infelizmente, eles dizem respeito à maneira como as três histórias se encontram e, portanto, é melhor calar para não estragar as poucas surpresas que o filme reserva.
Por fim, este é um filme de atrizes. Onde se lê Virginia, leia-se Nicole Kidman. Por Clarissa, entenda-se Meryl Streep. E substitua-se o nome Laura por Julianne Moore. Como bom filme de prestígio, que só existe para o Oscar e pelo Oscar, trata-se aqui de promover um show pessoal desses três prestigiosos nomes. Não é culpa das atrizes se apenas Laura parece, por vezes, um ser humano encontrável em outro lugar que não uma biblioteca.


As Horas
The Hours
 
Produção: EUA, 2002
Direção: Stephen Daldry
Com: Nicole Kidman, Meryl Streep, Julianne Moore
Quando: a partir de sexta-feira, em circuito nacional



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