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MARCELO COELHO
O teatro da ressurreição
Elogiando o talento de Rossini, um crítico afirmou
que ele era capaz de transformar em ópera até um rol de lavanderia. A primeira parte de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, está muito longe de ser um rol de lavanderia; é um texto de beleza arrebatadora. Mas ao transformar
aquelas páginas, repletas de terminologia rebuscada, num espetáculo com mais de 20 atores, muita música e pouquíssimos recursos cênicos, José Celso Martinez Corrêa fez mais do que uma brilhante proeza técnica.
José Celso foi genial. Assistindo à peça no teatro Oficina, domingo
passado, senti que estava vivendo um dos grandes momentos da
cultura brasileira, nesta ou em qualquer outra época da nossa
história.
Agora sinto que o leitor recua,
se intimida um pouco, porque
nem todo mundo tem disposição
para aderir ao mundo hiperbólico de Euclydes da Cunha, de Zé
Celso e dos críticos que se entusiasmam com ambos. Emocionei-me a valer com a peça. Tento aqui
analisá-la mais friamente.
Já é uma proeza, como eu estava dizendo, pôr em cena um trecho como este: "Três formações
geognósticas díspares, de idades
mal determinadas, se substitutem, ou se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o
predomínio, exclusivo de umas,
ou a combinação de todas, os traços variáveis da fisionomia da
terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas..."
(etc. etc.).
Isso é recitado ou cantado ou
gritado, conforme a hora, pela
massa dos atores do Oficina, como se o relevo brasileiro se tornasse, de repente, um grande coral de corpos nus. Eles carregam
três faixas coloridas, representando as "três formações geognósticas", e as entrelaçam, misturam,
carregam-nas em triunfo.
Até aí, contudo, a encenação do
texto euclydiano seria mais um
espetáculo de mímica ou de dança do que a "obra de arte total",
para usar o conceito wagneriano,
que, na verdade, é. Em pouco
tempo, as descrições geográficas
de Euclydes deixam de ser simplesmente "traduzidas" em linguagem corporal e se transformam em metáforas cada vez
mais ricas, mais cheias de significado.
Dou um exemplo. O texto descreve de que modo os maciços rochosos do sudeste se encontram com o oceano Atlântico. Na peça,
isso vai sendo feito, imperceptivelmente, por meio do encontro entre os atores e o próprio público, que é convidado a dançar, a dar-se as mãos, e a engrossar, num vaivém, um colorido desfile de
gente no estreito espaço do teatro.
Vi a peça bem do alto, no último andar do Oficina, o que achei
vantajoso, pois essa perspectiva
"aérea" é justamente a adotada
por Euclydes da Cunha nas primeiras páginas do livro. As filas
paralelas e entrelaçadas dos espectadores e dos atores, vistas de
cima, formavam bem o traçado
do litoral ou então o desenho de
um rio; o "conflito secular entre os
mares e as terras", de que fala
Euclydes, era também o conflito
entre público e companhia teatral, entre espectadores em trajes
urbanos e atores cobertos de trapos e de pó.
A própria geografia brasileira é
assim humanizada, torna-se metáfora do confronto histórico, da
guerra... e também da festa, da
utopia, do congraçamento. Esse
aspecto já está presente, sem dúvida, no texto de Euclydes da Cunha, mas é obra de Zé Celso trazê-lo à tona, com impressionante
economia de meios e, ao mesmo
tempo, com enorme efusão.
A peça também opera um movimento inverso, talvez ainda
mais interessante. O texto de
Euclydes da Cunha é cheio de metáforas; Zé Celso consegue "desfazer" essas metáforas, restituindo-lhes o sentido próprio, original.
Assim, logo no começo de "Os Sertões", alguns acidentes do relevo
brasileiro são comparados a "um
palco majestoso", a um "anfiteatro"... À medida que a fala dos
atores ressalta essas comparações,
todo o relato de Euclydes se atualiza, se corporifica na experiência
do público, que está justamente
num teatro de verdade.
Euclydes da Cunha diz que o
Brasil é uma "região privilegiada,
onde a natureza armou sua mais
portentosa oficina". A última palavra, recitada com ênfase pelos
atores, em pleno e ameaçado teatro Oficina, abandona tudo o que
poderia haver de metáfora puramente literária, para se tornar
real. Canudos, diz Zé Celso, é
aqui. A ponto de caber um rap em
favor da liberação da maconha
quando o texto fala do famoso
morro da Favela.
A linguagem técnica, virtuosística e espetada de Euclydes sofre
assim um processo de "nacionalização"; é reconquistada para o
nosso dia-a-dia. O vocabulário
científico do autor é entoado em
coro, como se viesse do povo; e
certas palavras de uso comum,
muito brasileiras, como "favela",
"cacimba", "canudo", "capoeira", são elevadas a um grau máximo de voltagem simbólica na encenação.
Outro achado de Zé Celso é fazer com que, às vezes, os acidentes
geográficos, e a própria Terra, sejam encarnados por atores que
passam a falar na primeira pessoa. O tom descritivo, obviamente
em terceira pessoa, do livro euclydiano é subvertido. O Brasil passa
a falar com sua própria voz.
Os mortos, as vítimas, os massacrados ressuscitam, portanto, a
partir da terra, do pó em que se tinham transformado. Talvez todo
o teatro de Zé Celso seja, aliás, um
teatro da ressurreição.
Da luta contra Silvio Santos ao
livro de Euclydes da Cunha, do
governo Lula à denúncia do desmatamento, da descrição de um
mandacaru à reinterpretação de
uma melodia caipira, várias camadas de significado se articulam no espetáculo; não se dispersam porque, no fundo, o diretor
está falando de uma coisa só.
Como sempre nas peças de Zé Celso, o espectador tem a impressão de que há vários finais sucessivos. Quando tudo já estava acabando, o espetáculo começa de
novo, como se o diretor hesitasse entre o final trágico e a apoteose
otimista. Mas também nisso há metáfora: a peça (como Canudos,
como a utopia, como a natureza nordestina, como o Brasil) parece
extinguir-se, mas renasce. Parece perto da derrota, mas não se rende. Zé Celso tampouco.
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