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São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 2003

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MARCELO COELHO

O teatro da ressurreição

Elogiando o talento de Rossini, um crítico afirmou que ele era capaz de transformar em ópera até um rol de lavanderia. A primeira parte de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, está muito longe de ser um rol de lavanderia; é um texto de beleza arrebatadora. Mas ao transformar aquelas páginas, repletas de terminologia rebuscada, num espetáculo com mais de 20 atores, muita música e pouquíssimos recursos cênicos, José Celso Martinez Corrêa fez mais do que uma brilhante proeza técnica.
José Celso foi genial. Assistindo à peça no teatro Oficina, domingo passado, senti que estava vivendo um dos grandes momentos da cultura brasileira, nesta ou em qualquer outra época da nossa história.
Agora sinto que o leitor recua, se intimida um pouco, porque nem todo mundo tem disposição para aderir ao mundo hiperbólico de Euclydes da Cunha, de Zé Celso e dos críticos que se entusiasmam com ambos. Emocionei-me a valer com a peça. Tento aqui analisá-la mais friamente.
Já é uma proeza, como eu estava dizendo, pôr em cena um trecho como este: "Três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas, se substitutem, ou se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o predomínio, exclusivo de umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas..." (etc. etc.).
Isso é recitado ou cantado ou gritado, conforme a hora, pela massa dos atores do Oficina, como se o relevo brasileiro se tornasse, de repente, um grande coral de corpos nus. Eles carregam três faixas coloridas, representando as "três formações geognósticas", e as entrelaçam, misturam, carregam-nas em triunfo.
Até aí, contudo, a encenação do texto euclydiano seria mais um espetáculo de mímica ou de dança do que a "obra de arte total", para usar o conceito wagneriano, que, na verdade, é. Em pouco tempo, as descrições geográficas de Euclydes deixam de ser simplesmente "traduzidas" em linguagem corporal e se transformam em metáforas cada vez mais ricas, mais cheias de significado.
Dou um exemplo. O texto descreve de que modo os maciços rochosos do sudeste se encontram com o oceano Atlântico. Na peça, isso vai sendo feito, imperceptivelmente, por meio do encontro entre os atores e o próprio público, que é convidado a dançar, a dar-se as mãos, e a engrossar, num vaivém, um colorido desfile de gente no estreito espaço do teatro.
Vi a peça bem do alto, no último andar do Oficina, o que achei vantajoso, pois essa perspectiva "aérea" é justamente a adotada por Euclydes da Cunha nas primeiras páginas do livro. As filas paralelas e entrelaçadas dos espectadores e dos atores, vistas de cima, formavam bem o traçado do litoral ou então o desenho de um rio; o "conflito secular entre os mares e as terras", de que fala Euclydes, era também o conflito entre público e companhia teatral, entre espectadores em trajes urbanos e atores cobertos de trapos e de pó.
A própria geografia brasileira é assim humanizada, torna-se metáfora do confronto histórico, da guerra... e também da festa, da utopia, do congraçamento. Esse aspecto já está presente, sem dúvida, no texto de Euclydes da Cunha, mas é obra de Zé Celso trazê-lo à tona, com impressionante economia de meios e, ao mesmo tempo, com enorme efusão.
A peça também opera um movimento inverso, talvez ainda mais interessante. O texto de Euclydes da Cunha é cheio de metáforas; Zé Celso consegue "desfazer" essas metáforas, restituindo-lhes o sentido próprio, original. Assim, logo no começo de "Os Sertões", alguns acidentes do relevo brasileiro são comparados a "um palco majestoso", a um "anfiteatro"... À medida que a fala dos atores ressalta essas comparações, todo o relato de Euclydes se atualiza, se corporifica na experiência do público, que está justamente num teatro de verdade.
Euclydes da Cunha diz que o Brasil é uma "região privilegiada, onde a natureza armou sua mais portentosa oficina". A última palavra, recitada com ênfase pelos atores, em pleno e ameaçado teatro Oficina, abandona tudo o que poderia haver de metáfora puramente literária, para se tornar real. Canudos, diz Zé Celso, é aqui. A ponto de caber um rap em favor da liberação da maconha quando o texto fala do famoso morro da Favela.
A linguagem técnica, virtuosística e espetada de Euclydes sofre assim um processo de "nacionalização"; é reconquistada para o nosso dia-a-dia. O vocabulário científico do autor é entoado em coro, como se viesse do povo; e certas palavras de uso comum, muito brasileiras, como "favela", "cacimba", "canudo", "capoeira", são elevadas a um grau máximo de voltagem simbólica na encenação.
Outro achado de Zé Celso é fazer com que, às vezes, os acidentes geográficos, e a própria Terra, sejam encarnados por atores que passam a falar na primeira pessoa. O tom descritivo, obviamente em terceira pessoa, do livro euclydiano é subvertido. O Brasil passa a falar com sua própria voz.
Os mortos, as vítimas, os massacrados ressuscitam, portanto, a partir da terra, do pó em que se tinham transformado. Talvez todo o teatro de Zé Celso seja, aliás, um teatro da ressurreição.
Da luta contra Silvio Santos ao livro de Euclydes da Cunha, do governo Lula à denúncia do desmatamento, da descrição de um mandacaru à reinterpretação de uma melodia caipira, várias camadas de significado se articulam no espetáculo; não se dispersam porque, no fundo, o diretor está falando de uma coisa só.
Como sempre nas peças de Zé Celso, o espectador tem a impressão de que há vários finais sucessivos. Quando tudo já estava acabando, o espetáculo começa de novo, como se o diretor hesitasse entre o final trágico e a apoteose otimista. Mas também nisso há metáfora: a peça (como Canudos, como a utopia, como a natureza nordestina, como o Brasil) parece extinguir-se, mas renasce. Parece perto da derrota, mas não se rende. Zé Celso tampouco.


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