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RODAPÉ
Os flamingos do apocalipse e a casa desarrumada
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Sem acento, mas carregado de
sotaque, chega ao leitor brasileiro "O Último Voo do Flamingo", romance do moçambicano
Mia Couto, 49, ex-jornalista, biólogo e professor. Para além dos
eventuais acordos ortográficos, liga-nos o idioma comum, atravessado pelos oceanos. Estranho impulso, o nosso: damos as costas à
América Latina, apesar das fronteiras próximas, invocando o
abismo da língua; hesitamos em
conhecer os escritores africanos
de língua portuguesa, fazendo
pouco da identidade lingüística e
alegando a distância geográfica.
A realidade pós-colonial de um
país novo, dilacerado entre as ruínas da guerra da libertação, os
conflitos civis, a inserção forçada
na economia de mercado, achacado pelos predadores da filantropia internacional, segue, em Mia
Couto, de mãos dadas com uma
literatura que bebe na oralidade,
incorpora os ditos populares, ainda na madrugada das formas poéticas. Destas mesmas raízes imemoriais, nasce a predisposição ao
realismo mágico, que transfigura
a opressão em fórmula, a um só
tempo, lírica e crítica.
A imagem partida que dá título
ao romance -a ameaça aos pássaros que, versão modesta da fênix, diariamente empurram o sol
para longe, apenas para vê-lo retornar- sugere as duas asas que
sustentam a ficção de Mia Couto:
um trabalho de "desarrumação"
da linguagem (a expressão é sua),
invenção em que arcaico e moderno, oral e escrito se combinam, aproximando-o do angolano Luandino Vieira e do mineiro
Guimarães Rosa, e o empenho em
dizer o país, buscar uma construção alegórica que dê conta desta
realidade, por si desarrumada.
À maneira do diagnóstico de Aldous Huxley sobre os brasileiros
(um povo jovem, permanentemente preocupado em testar e assegurar manualmente a própria
virilidade), o xis do problema está
no sexo.
Num vilarejo moçambicano
imaginário, capacetes azuis explodem misteriosamente, deixando como herança e despojos apenas as genitálias. Um italiano, investigador das Nações Unidas encarregado de desvendar as mortes, inicia-se, perplexo e relutante,
no universo da cultura africana.
Seu guia e tradutor oficial é um jovem negro, que se ocupa de narrar o romance.
Se a ironia impõe-se a partir do
inusitado e surreal da situação
primeira, a que não faltam explicações mágicas, da ordem da tradição (passando pelas versões do
feiticeiro e da prostituta da vila), o
contraponto tenso da história de
violência do continente acaba por
transformá-la em humor com um
traço de macabro realismo. As gerações de amputados pelas minas
terrestres, semeadas ao longo dos
conflitos coloniais e dos longos
anos de guerrilha, permanecem
num segundo plano difuso, mas
nunca apagado em excesso.
Fazer do narrador um membro
da comunidade local, além de tradutor, é um dos achados de Mia
Couto, transformando-o em figura de mediação e expondo o permanente choque entre idiomas e
visões de mundo completamente
apartadas: a local, de fôlego tectônico, mítico, e a do estrangeiro,
contaminada por um racionalismo deslocado e pela culpa do
usurpador. O próprio Mia Couto,
branco e moçambicano de primeira geração, deve muito a sua
infância na Beira e à convivência
sem barreiras do filho de portugueses com os meninos negros.
Contrapartida da ironia afiada
em sátira -evidente nos retratos
do administrador local e da caprichosa primeira dama- é o sopro
poético que anima as figuras que
encarnam a tradição imemorial,
como as personagens do pai do
narrador, duplo do homem que
troca o mundo pela solidão de
uma canoa, em "A Terceira Margem do Rio", e de sua mãe, "mater
dolorosa" chorando um mar de
lágrimas por todas as mães do
mundo.
Do encontro das duas correntes, a lírica e a contundente, faz-se
a força da imagem que encerra o
romance, em que o tradutor e o
investigador, solidários na angústia, aguardam, literalmente à beira de um abismo, a redenção que
o canto convocatório dos flamingos, o do próprio livro, parece
anunciar, sem garantir.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço.
O Voo do Flamingo
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (232 págs.)
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