São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2005

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RODAPÉ

Os flamingos do apocalipse e a casa desarrumada

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Sem acento, mas carregado de sotaque, chega ao leitor brasileiro "O Último Voo do Flamingo", romance do moçambicano Mia Couto, 49, ex-jornalista, biólogo e professor. Para além dos eventuais acordos ortográficos, liga-nos o idioma comum, atravessado pelos oceanos. Estranho impulso, o nosso: damos as costas à América Latina, apesar das fronteiras próximas, invocando o abismo da língua; hesitamos em conhecer os escritores africanos de língua portuguesa, fazendo pouco da identidade lingüística e alegando a distância geográfica.
A realidade pós-colonial de um país novo, dilacerado entre as ruínas da guerra da libertação, os conflitos civis, a inserção forçada na economia de mercado, achacado pelos predadores da filantropia internacional, segue, em Mia Couto, de mãos dadas com uma literatura que bebe na oralidade, incorpora os ditos populares, ainda na madrugada das formas poéticas. Destas mesmas raízes imemoriais, nasce a predisposição ao realismo mágico, que transfigura a opressão em fórmula, a um só tempo, lírica e crítica.
A imagem partida que dá título ao romance -a ameaça aos pássaros que, versão modesta da fênix, diariamente empurram o sol para longe, apenas para vê-lo retornar- sugere as duas asas que sustentam a ficção de Mia Couto: um trabalho de "desarrumação" da linguagem (a expressão é sua), invenção em que arcaico e moderno, oral e escrito se combinam, aproximando-o do angolano Luandino Vieira e do mineiro Guimarães Rosa, e o empenho em dizer o país, buscar uma construção alegórica que dê conta desta realidade, por si desarrumada.
À maneira do diagnóstico de Aldous Huxley sobre os brasileiros (um povo jovem, permanentemente preocupado em testar e assegurar manualmente a própria virilidade), o xis do problema está no sexo.
Num vilarejo moçambicano imaginário, capacetes azuis explodem misteriosamente, deixando como herança e despojos apenas as genitálias. Um italiano, investigador das Nações Unidas encarregado de desvendar as mortes, inicia-se, perplexo e relutante, no universo da cultura africana. Seu guia e tradutor oficial é um jovem negro, que se ocupa de narrar o romance.
Se a ironia impõe-se a partir do inusitado e surreal da situação primeira, a que não faltam explicações mágicas, da ordem da tradição (passando pelas versões do feiticeiro e da prostituta da vila), o contraponto tenso da história de violência do continente acaba por transformá-la em humor com um traço de macabro realismo. As gerações de amputados pelas minas terrestres, semeadas ao longo dos conflitos coloniais e dos longos anos de guerrilha, permanecem num segundo plano difuso, mas nunca apagado em excesso.
Fazer do narrador um membro da comunidade local, além de tradutor, é um dos achados de Mia Couto, transformando-o em figura de mediação e expondo o permanente choque entre idiomas e visões de mundo completamente apartadas: a local, de fôlego tectônico, mítico, e a do estrangeiro, contaminada por um racionalismo deslocado e pela culpa do usurpador. O próprio Mia Couto, branco e moçambicano de primeira geração, deve muito a sua infância na Beira e à convivência sem barreiras do filho de portugueses com os meninos negros.
Contrapartida da ironia afiada em sátira -evidente nos retratos do administrador local e da caprichosa primeira dama- é o sopro poético que anima as figuras que encarnam a tradição imemorial, como as personagens do pai do narrador, duplo do homem que troca o mundo pela solidão de uma canoa, em "A Terceira Margem do Rio", e de sua mãe, "mater dolorosa" chorando um mar de lágrimas por todas as mães do mundo.
Do encontro das duas correntes, a lírica e a contundente, faz-se a força da imagem que encerra o romance, em que o tradutor e o investigador, solidários na angústia, aguardam, literalmente à beira de um abismo, a redenção que o canto convocatório dos flamingos, o do próprio livro, parece anunciar, sem garantir.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço.
O Voo do Flamingo
    
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (232 págs.)


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