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LITERATURA
"O Último Voo do Flamingo", quarto romance do escritor, que concorre a prêmio do "Independent", chega ao Brasil
Mia Couto inventa Moçambique em narrativa poética
LUCIANA ARAUJO
DA REDAÇÃO
Quando tinha dois anos de idade, o pequeno António Emílio
Leite Couto achava que era um
gato. "E fui eu que disse para os
meus pais: "Eu quero chamar-me
de Mia". E assim fiquei. A ficção
em mim começou no meu próprio nome", recorda-se. Anos
mais tarde, o moçambicano Mia
Couto inventou seu país em "O
Último Voo do Flamingo" -assim mesmo, sem acento-, quarto romance do escritor.
Publicado originalmente em
2000, quando Moçambique comemorava 25 anos de independência, o livro que chega agora ao
Brasil pela Companhia das Letras
parte de fatos bizarros -soldados das Nações Unidas explodem
misteriosamente- e desenrola-se em pura poesia.
A história se passa nos primeiros anos do pós-guerra, mas por
vezes parece levar o leitor para
outro tempo: o da memória; mas
nunca a um outro lugar: sempre
Moçambique. Apesar de a vila onde tudo se passa, Tizangara, não
existir no mapa. "Estou falando
de um Moçambique que é meu
país imaginário, inventado. Enquanto nação, está ainda em fase
de projeto", aponta Couto, 49.
Chamado para investigar as
mortes dos soldados, o italiano
Massimo Risi conta com a ajuda
de um tradutor. Entretanto, para
ele, o enigma não é o português.
"Problema não é a língua. O que
eu não entendo é o mundo daqui", diz o personagem.
Mundo que Couto constrói numa narrativa que traz em si o falar
e os ditos locais. "É uma criação
minha, mas procede, em grande
parte, de sugestões da lógica com
que os moçambicanos usam o
português, que é, para a maior
parte deles, a segunda língua, que
deve ser tornada maleável, plástica. Capaz de aceitar namoros com
dados da cultura bantu", explica o
autor. E revela ainda uma cuidadosa elaboração ficcional. "Existe
também o componente poético, a
liberdade de reinventar palavras,
subverter provérbios e retirar a
linguagem da dimensão utilitária
a que está sujeita no cotidiano."
Com obras traduzidas para 20
línguas, entre elas a holandesa, a
francesa e a italiana, Couto diz ser
"impossível ter algum zelo nesta
dispersão". Entretanto mantém
contato com seus tradutores. "Estou disponível para encontrar em
conjunto as melhores soluções.
Embora ache que o que faço em
língua portuguesa nem sempre
tenha possibilidade de equivalência em outras línguas. Sou um escritor condenado ao meu próprio
idioma", arremata o africano.
E os leitores moçambicanos?
"Um escritor em Moçambique
não pode ficar dependente apenas dos livros. Eu uso o teatro, o
rádio, os jornais para comunicar
às pessoas", conta o escritor, que
há 16 anos trabalha com um grupo profissional de teatro. "Essa
experiência tem-se revelado como uma escola para apurar formas de trabalhar a palavra para
que ela transporte emoção."
De qualquer forma, é na literatura que Couto aposta como instrumento de resgate da história
do povo de seu país. "Nós sofremos um trauma insuperável: uma
guerra fratricida que matou 16
milhões. Quando ela terminou,
havia a impressão de que a paz era
um sonho inatingível", diz Couto.
"Mas a paz revelou-se possível e
houve um encantamento coletivo. Ao mesmo tempo, uma profunda amnésia nos convidou a esquecer a violência, nos roubou a
lembrança desse sofrimento."
Para Couto, esse "processo de
esquecimento" é preferível à Comissão de Verdade e Reconciliação realizada na África do Sul,
após o apartheid, mas deixa os
moçambicanos sem acesso a seu
passado. E é aí que entra o escritor. "A escrita literária pode sugerir uma forma de fazer essa ponte
e de reconquistarmos esse tempo
como nosso", conclui.
"O Último Voo do Flamingo"
está entre os 16 indicados que
concorrem ao prêmio de ficção
estrangeira do jornal inglês "Independent". "Budapeste", de Chico
Buarque, e "O Homem Duplicado", de José Saramago, também
foram selecionados. "Não poderia ter companhia que mais me
honrasse", destaca. Os seis finalistas ao prêmio de 10 mil libras (R$
50 mil) -dividido entre escritor e
tradutor- serão anunciados em
março e o vencedor, em abril.
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