São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2005

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LITERATURA

"O Último Voo do Flamingo", quarto romance do escritor, que concorre a prêmio do "Independent", chega ao Brasil

Mia Couto inventa Moçambique em narrativa poética

LUCIANA ARAUJO
DA REDAÇÃO

Quando tinha dois anos de idade, o pequeno António Emílio Leite Couto achava que era um gato. "E fui eu que disse para os meus pais: "Eu quero chamar-me de Mia". E assim fiquei. A ficção em mim começou no meu próprio nome", recorda-se. Anos mais tarde, o moçambicano Mia Couto inventou seu país em "O Último Voo do Flamingo" -assim mesmo, sem acento-, quarto romance do escritor.
Publicado originalmente em 2000, quando Moçambique comemorava 25 anos de independência, o livro que chega agora ao Brasil pela Companhia das Letras parte de fatos bizarros -soldados das Nações Unidas explodem misteriosamente- e desenrola-se em pura poesia.
A história se passa nos primeiros anos do pós-guerra, mas por vezes parece levar o leitor para outro tempo: o da memória; mas nunca a um outro lugar: sempre Moçambique. Apesar de a vila onde tudo se passa, Tizangara, não existir no mapa. "Estou falando de um Moçambique que é meu país imaginário, inventado. Enquanto nação, está ainda em fase de projeto", aponta Couto, 49.
Chamado para investigar as mortes dos soldados, o italiano Massimo Risi conta com a ajuda de um tradutor. Entretanto, para ele, o enigma não é o português. "Problema não é a língua. O que eu não entendo é o mundo daqui", diz o personagem.
Mundo que Couto constrói numa narrativa que traz em si o falar e os ditos locais. "É uma criação minha, mas procede, em grande parte, de sugestões da lógica com que os moçambicanos usam o português, que é, para a maior parte deles, a segunda língua, que deve ser tornada maleável, plástica. Capaz de aceitar namoros com dados da cultura bantu", explica o autor. E revela ainda uma cuidadosa elaboração ficcional. "Existe também o componente poético, a liberdade de reinventar palavras, subverter provérbios e retirar a linguagem da dimensão utilitária a que está sujeita no cotidiano."
Com obras traduzidas para 20 línguas, entre elas a holandesa, a francesa e a italiana, Couto diz ser "impossível ter algum zelo nesta dispersão". Entretanto mantém contato com seus tradutores. "Estou disponível para encontrar em conjunto as melhores soluções. Embora ache que o que faço em língua portuguesa nem sempre tenha possibilidade de equivalência em outras línguas. Sou um escritor condenado ao meu próprio idioma", arremata o africano.
E os leitores moçambicanos? "Um escritor em Moçambique não pode ficar dependente apenas dos livros. Eu uso o teatro, o rádio, os jornais para comunicar às pessoas", conta o escritor, que há 16 anos trabalha com um grupo profissional de teatro. "Essa experiência tem-se revelado como uma escola para apurar formas de trabalhar a palavra para que ela transporte emoção."
De qualquer forma, é na literatura que Couto aposta como instrumento de resgate da história do povo de seu país. "Nós sofremos um trauma insuperável: uma guerra fratricida que matou 16 milhões. Quando ela terminou, havia a impressão de que a paz era um sonho inatingível", diz Couto. "Mas a paz revelou-se possível e houve um encantamento coletivo. Ao mesmo tempo, uma profunda amnésia nos convidou a esquecer a violência, nos roubou a lembrança desse sofrimento."
Para Couto, esse "processo de esquecimento" é preferível à Comissão de Verdade e Reconciliação realizada na África do Sul, após o apartheid, mas deixa os moçambicanos sem acesso a seu passado. E é aí que entra o escritor. "A escrita literária pode sugerir uma forma de fazer essa ponte e de reconquistarmos esse tempo como nosso", conclui.
"O Último Voo do Flamingo" está entre os 16 indicados que concorrem ao prêmio de ficção estrangeira do jornal inglês "Independent". "Budapeste", de Chico Buarque, e "O Homem Duplicado", de José Saramago, também foram selecionados. "Não poderia ter companhia que mais me honrasse", destaca. Os seis finalistas ao prêmio de 10 mil libras (R$ 50 mil) -dividido entre escritor e tradutor- serão anunciados em março e o vencedor, em abril.


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