São Paulo, terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Os fantasmas divertem-se

Acreditar que a política de alianças terminou com as duas guerras do século 20 é fantasioso

NO VERÃO de 1914, um atentado em Sarajevo lançou a Europa no abismo: um nacionalista sérvio assassinava o herdeiro do trono austro-húngaro, Franz Ferdinand, e sua mulher, Sofia. Um caso de terrorismo sem grandes implicações internacionais?
Longe disso. Num contexto de confronto regional entre a Sérvia e o Império Austro-Húngaro, o caso não podia ser percepcionado como um atentado vulgar. O ataque do jovem nacionalista era um ataque da Sérvia aos Habsburgos. No espaço de poucos meses, o sistema de alianças vigente na Europa seria ativado para um trágico final. Se a Áustria era atacada, a Áustria declarava guerra à Sérvia. Declarada guerra à Sérvia, a Alemanha declarava guerra à Rússia e à França. Declarada guerra à Rússia e à França, a Inglaterra declarava guerra à Alemanha. Com a entrada posterior do Japão e dos Estados Unidos, o conflito mundializava-se.
Verdade que ninguém relembra estes pormenores arcaicos nos dias que passam. Com a queda do Muro de Berlim, e excetuando o terrorismo islamita que paira intermitentemente sobre a vida ocidental, a História chegou ao fim. Mas chegou mesmo?
Um caso recente levantou as minhas antenas como nenhum outro nos últimos anos. É o caso do Kosovo, naturalmente. A razão é simples: sempre que os Bálcãs dão sinais de vida, eu tremo por dentro. Alguns especialistas dizem para eu não tremer. O estimável Christopher Hitchens, por exemplo, em artigo recente para a "Slate", esclarece, com golpes de simplicidade otimista (a mesma simplicidade que ele exibiu em relação ao Iraque), a complexa questão kosovar. E que nos diz Hitchens?
Tudo começou nas Guerras Balcânicas de 1912 e 1913, quando o reino da Sérvia decide invadir e anexar um antigo território otomano. As razões não eram simplesmente políticas ou nacionalistas, mas históricas: nesse território os sérvios tiveram uma traumatizante derrota militar em finais do século 14 e recuperá-lo era vital para a construção e expansão da identidade sérvia. O problema balcânico terminaria em guerra, como sabemos, e a desagregação dos impérios otomano e austro-húngaro como resultado do conflito mundial colocaria o Kosovo sob alçada iugoslava.
Assim se entende como a independência proclamada pelo Kosovo no passado dia 17 de fevereiro era inevitável. E, mais do que inevitável, desejável: com o fim da Iugoslávia comunista, não existe nenhum motivo para que o Kosovo, região da Sérvia com maioria albanesa, continue sob o guarda-chuva de Belgrado -o mesmo guarda-chuva que permitiu a Milosevic as suas conhecidas matanças.
A lógica histórica de Hitchens é rigorosa e, num mundo ideal, seria incontestável. Mas quem vive num mundo ideal? Aliás, como é possível observar as pretensões independentistas do Kosovo sem medir as suas conseqüências?
Hitchens afirma, e eu concordo, que o precedente sérvio não é necessariamente um perigo para outros países do mundo -Espanha, França, Rússia- ao alimentar iguais ambições independentistas em regiões desses países. Esse, na verdade, é o argumento mais frágil dos "realistas" americanos, que confundem a especificidade histórica, étnica e religiosa do Kosovo com a situação vivida, por exemplo, no País Basco.
Mas Hitchens esquece a ameaça central que a independência do Kosovo representa: a possibilidade de, uma vez mais, ativar alianças históricas que estiveram apenas adormecidas.
Moscou já fez saber que votará contra as pretensões independentistas do Kosovo nas Nações Unidas. E ameaça com violência se as resoluções do Conselho de Segurança, onde a Rússia tem papel central, não forem respeitadas.
A juntar a tudo isso, existem sinais de que a Sérvia não ficará pela ameaça diplomática, partindo para uma invasão militar da província que ainda reclama como sua. Tal como relembrava recentemente o jornalista Thomas Landen do influente "The Brussels Journal", 2008 pode ser o ano em que o mundo presencia o enfrentamento militar entre a Sérvia e o Ocidente. No fundo, o enfrentamento impensável entre a Rússia, que não está disposta a vender um aliado tradicional como a Sérvia, e as potências da Otan, estacionadas no novo "estado" com a missão caridosa de o defenderem.
Acreditar que a política de alianças terminou com as duas guerras do século 20 é acreditar numa fantasia perigosa. Cuidado, mundo. Os fantasmas divertem-se.


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