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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Os fantasmas divertem-se
Acreditar que a política de alianças terminou com as duas guerras do século 20 é fantasioso
NO VERÃO de 1914, um atentado em Sarajevo lançou a Europa no abismo: um nacionalista sérvio assassinava o herdeiro
do trono austro-húngaro, Franz
Ferdinand, e sua mulher, Sofia. Um
caso de terrorismo sem grandes implicações internacionais?
Longe disso. Num contexto de
confronto regional entre a Sérvia e o
Império Austro-Húngaro, o caso
não podia ser percepcionado como
um atentado vulgar. O ataque do jovem nacionalista era um ataque da
Sérvia aos Habsburgos. No espaço
de poucos meses, o sistema de alianças vigente na Europa seria ativado
para um trágico final. Se a Áustria
era atacada, a Áustria declarava
guerra à Sérvia. Declarada guerra à
Sérvia, a Alemanha declarava guerra
à Rússia e à França. Declarada guerra à Rússia e à França, a Inglaterra
declarava guerra à Alemanha. Com a
entrada posterior do Japão e dos Estados Unidos, o conflito mundializava-se.
Verdade que ninguém relembra
estes pormenores arcaicos nos dias
que passam. Com a queda do Muro
de Berlim, e excetuando o terrorismo islamita que paira intermitentemente sobre a vida ocidental, a História chegou ao fim. Mas chegou
mesmo?
Um caso recente levantou as minhas antenas como nenhum outro
nos últimos anos. É o caso do Kosovo, naturalmente. A razão é simples:
sempre que os Bálcãs dão sinais de
vida, eu tremo por dentro. Alguns
especialistas dizem para eu não tremer. O estimável Christopher Hitchens, por exemplo, em artigo recente para a "Slate", esclarece, com
golpes de simplicidade otimista (a
mesma simplicidade que ele exibiu
em relação ao Iraque), a complexa
questão kosovar. E que nos diz Hitchens?
Tudo começou nas Guerras Balcânicas de 1912 e 1913, quando o reino
da Sérvia decide invadir e anexar um
antigo território otomano. As razões
não eram simplesmente políticas ou
nacionalistas, mas históricas: nesse
território os sérvios tiveram uma
traumatizante derrota militar em finais do século 14 e recuperá-lo era
vital para a construção e expansão
da identidade sérvia. O problema
balcânico terminaria em guerra, como sabemos, e a desagregação dos
impérios otomano e austro-húngaro como resultado do conflito mundial colocaria o Kosovo sob alçada
iugoslava.
Assim se entende como a independência proclamada pelo Kosovo
no passado dia 17 de fevereiro era
inevitável. E, mais do que inevitável,
desejável: com o fim da Iugoslávia
comunista, não existe nenhum motivo para que o Kosovo, região da
Sérvia com maioria albanesa, continue sob o guarda-chuva de Belgrado
-o mesmo guarda-chuva que permitiu a Milosevic as suas conhecidas
matanças.
A lógica histórica de Hitchens é rigorosa e, num mundo ideal, seria incontestável. Mas quem vive num
mundo ideal? Aliás, como é possível
observar as pretensões independentistas do Kosovo sem medir as suas
conseqüências?
Hitchens afirma, e eu concordo,
que o precedente sérvio não é necessariamente um perigo para outros
países do mundo -Espanha, França, Rússia- ao alimentar iguais ambições independentistas em regiões
desses países. Esse, na verdade, é o
argumento mais frágil dos "realistas" americanos, que confundem a
especificidade histórica, étnica e religiosa do Kosovo com a situação vivida, por exemplo, no País Basco.
Mas Hitchens esquece a ameaça
central que a independência do Kosovo representa: a possibilidade de,
uma vez mais, ativar alianças históricas que estiveram apenas adormecidas.
Moscou já fez saber que votará
contra as pretensões independentistas do Kosovo nas Nações Unidas.
E ameaça com violência se as resoluções do Conselho de Segurança, onde a Rússia tem papel central, não
forem respeitadas.
A juntar a tudo isso, existem sinais
de que a Sérvia não ficará pela ameaça diplomática, partindo para uma
invasão militar da província que ainda reclama como sua. Tal como relembrava recentemente o jornalista
Thomas Landen do influente "The
Brussels Journal", 2008 pode ser o
ano em que o mundo presencia o enfrentamento militar entre a Sérvia e
o Ocidente. No fundo, o enfrentamento impensável entre a Rússia,
que não está disposta a vender um
aliado tradicional como a Sérvia, e as
potências da Otan, estacionadas no
novo "estado" com a missão caridosa de o defenderem.
Acreditar que a política de alianças terminou com as duas guerras
do século 20 é acreditar numa fantasia perigosa. Cuidado, mundo. Os
fantasmas divertem-se.
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