São Paulo, Sexta-feira, 26 de Fevereiro de 1999
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Longa-metragem rompe com lógica da individualidade

Divulgação
Cena de "Além da Linha Vermelha", um dos três longas sobre a Segunda Guerra a concorrer ao Oscar de Melhor Filme; os outros são "O Resgate do Soldado Ryan" e "A Vida é Bela"



Filme de Terrence Malick baseado em romance de James Jones mescla atores consagrados como John Travolta em aparições-relâmpago e promessas como Jim Caviezel


INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

O que primeiro impressiona, em "Além da Linha Vermelha", é o estupendo trabalho de marketing que o envolve.
Entre outras coisas, ele conseguiu nos convencer, de uma hora para outra, de que a ausência de 20 anos do diretor Terrence Malick (seu último filme é de 1978) foi uma perda irreparável, ou melhor, só reparável pela saída deste novo trabalho.
Na verdade, pouca gente fora do círculo familiar lembrava que Malick ainda existia. Ninguém sentiu tanta falta assim. Quando em atividade, nos anos 70, ele não chegou a ser um dos talentos mais empolgantes de sua geração.
Algumas informações passadas à imprensa também são sintomáticas da precisão do marketing de "Além da Linha Vermelha".
De acordo com elas, um trabalho antropológico digno de um Lévi-Strauss foi realizado para retratar com precisão os traços dos habitantes das ilhas do Pacífico onde se realizou, durante a Segunda Guerra, a sangrenta batalha de Guadalcanal -de que o filme reconstitui um fragmento.
Informações desse tipo tendem a criar a aura que vem cercando esse filme sobre uma companhia de artilharia norte-americana encarregada de tomar uma posição estratégica.
Dito isso, essa aura não é de todo artificial. Guadalcanal foi um dos episódios mais sangrentos do fronte oriental, durou cerca de seis meses e a expulsão dos japoneses da ilha foi um triunfo mais que significativo dos Aliados.
Malick dispôs-se a mostrar a crueza desses combates a partir de um grupo de homens encarregado de uma das muitas missões insanas que ali tiveram lugar.

Mérito
"Além da Linha Vermelha" tem o mérito inegável de fugir ao figurino hollywoodiano atual, "redondo" e um tanto cosmético, impecável, mas em que se percebe a falsidade seja das propostas, seja das imagens (caso do límpido "O Resgate do Soldado Ryan", outro candidato ao Oscar).
Entre os dois, o filme de Malick parece mais estimável, mais verdadeiro, até por suas imperfeições.
A mais sensível dessas imperfeições talvez venha do roteiro. Visivelmente, Malick tinha filme para muito mais tempo do que sua duração final.
Para ficar numa medida razoavelmente standard, tem-se a impressão de que muito material foi cortado na sala de montagem, o que produziu uma narrativa meio truncada, em que o espectador sente, não raro, dificuldade para se localizar.
Mas, nessa era de narrativas tão impecáveis, que não deixam a menor margem a dúvida sobre o que aconteceu antes e o que virá depois, esse desconforto proporcionado ao espectador não deixa de ser estimulante. A clareza não é uma virtude obrigatória.
Outro problema -talvez decorrente dos 20 anos que Malick passou longe das câmeras- está no tratamento dado aos clichês do filme de guerra.
Logo no início, por exemplo, Malick coloca em relevo um personagem forte, o sargento Welch. Como os sargentos participam de nosso imaginário como o elo forte (brutal, até) entre o comando e os pracinhas, e como o ator que faz o papel (Sean Penn) é uma estrela, espera-se que ele tenha um papel decisivo ao longo de todo o filme.
Nada disso. Welsh logo some do mapa, para retornar horas depois. Entrementes, o filme se dedica aos outros muitos personagens. Desvio do clichê, sem dúvida. Mas, como outros clichês também são sugeridos e depois contrariados, o espectador tende a ficar um pouco sem chão, um tanto perdido ao longo da ação.
Da mesma forma, vários outros atores famosos fazem pequenas pontas, e diversos papéis importantes são dados a atores menos conhecidos. Além disso, como debaixo de um capacete todo mundo fica meio parecido, nos vemos diante de um problema elementar de identificação: passamos boa parte do filme tentando descobrir quem é quem na história.
Existe, em troca, um personagem que funciona como âncora: o tenente-coronel Tall (Nick Nolte). Sobre seus ombros repousa a carga de conduzir a missão insana de tomar a colina, não importa a que preço, levando seus homens ao matadouro em nome seja da vaidade pessoal, seja da implacável lógica militar (a disciplina, necessidade de cumprir tarefas).
Essa lógica bélica contraria toda a tradição do cinema americano, centrada no indivíduo, já que a guerra pede, precisamente, o sacrifício do indivíduo em favor do todo.
Talvez nenhum filme de guerra feito nos EUA tenha antes rompido com essa lógica da invidualidade, que leva obrigatoriamente à construção de heróis (ainda que precários, mas que constituem o centro da ação).
"Além da Linha Vermelha" rompe com essa lógica, e essa é sua principal contribuição, capaz de levar a esquecer ou ao menos relevar seus problemas, que não são pequenos.

Filme: Além da Linha Vermelha Produção: EUA, 1998 Direção: Terrence Malick Com: Sean Penn, Nick Nolte, John Cusack, Woody Harrelson, Jim Caviezel, John Travolta, George Clooney Quando: a partir de hoje, nos cines Olido 1, Butantã 2, Continental 2, Iguatemi 2, Belas Artes - Villa Lobos, Eldorado 1, West Plaza 1, Gazeta e circuito


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