São Paulo, quinta, 26 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As vozes da beirada do milênio

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio de Janeiro

A dois anos da troca de dígitos no relógio dos milênios, a música pop procura vozes que possam representar o início da era 2000. Candidatas não faltam, e muitas, no Brasil de hoje, resolveram estar no Rio de Janeiro. Dessas, duas saltam à frente em 1998: a de Cris Braun e a de Arícia Mess.
Chegam trazendo peculiaridades a um meio já inflacionado, o das cantoras pop: são também compositoras e começam a lidar com o mercado de maneira mais ou menos paralela à do esquemão institucionalizado pela indústria.
Fruto do Brasil globalizado, Cris Braun é gaúcha-alagoana-carioca (gaúcha até os 9 anos, alagoana dos 9 aos 18 e carioca daí em diante), tem 35 anos e lança nos próximos dias seu disco de estréia, "Cuidado com Pessoas Como Eu".
Egressa dos Sex Beatles (banda pop liderada pelo compositor Alvin L., que lançou entre 93 e 95 dois discos sem grande repercussão comercial), é inauguradora do selo Fullgás, da também cantora-compositora Marina Lima.
O selo é vinculado à "major" PolyGram, mas, segundo Marina, propósitos comerciais não são prioritários. "É uma espécie de cooperativa minha com a PolyGram, que me deu uma carta em branco para contratar quem tiver talento. É um trabalho ideológico meu: quero lançar artistas comercialmente viáveis, mas criando um ruído novo no mercado. O cenário anda um pouco igual demais."
Arícia move-se no eixo Niterói-Rio (nasceu naquela, vive nessa), não revela a idade, mas diz que bate mais ou menos com as dos artistas da geração que desponta nos 90, quase toda composta de maiores de 30 anos.
Grava seu primeiro disco de forma independente -após anos de burburinho não gravado em CD, visitas de executivos de gravadoras em seu camarim e convites de contratação declinados- e promete lançá-lo a todo custo neste ano. Mas só quando terminar as sessões de gravação vai atrás das grandes corporações.
Cris Braun estréia apostando no pop com inflexões eletrônicas ("de trip hop, drum'n'bass, trip'n'bass, sei lá, nunca sei esses nomes"), que ela usa em covers inesperados como os de "Brigas" (do repertório de Angela Maria e Agnaldo Timóteo) e "Bom Conselho", de Chico Buarque.
"A música do Chico é muito atual, é mais que rock'n'roll. Pode ser tanto a posição de um cretino como a de um revolucionário. É essa ambiguidade que busco. Pode ser ser um manifesto pela velocidade (eu não cantaria "eu quero uma casa no campo...'), mas pode ser também um "calma lá', um chamado de atenção para o excesso de velocidade."
Velocidade, ao menos quanto à condução da carreira, não é preocupação central de Arícia, que acumulou longa experiência como "backing vocal', secundando artistas díspares como Bebeto, Fernanda Abreu e Oswaldo Montenegro.
"Nunca vi uma vocalista virar cantora. Mas houve uma hora em que cansei, quis partir para a minha. E sabia que tinha que ser bacana, que não podia dar mole."
Atravessou a década sendo cultuada para poucos, despertando curiosidade em flashes como uma participação-relâmpago no disco "Raio X" (97), de Fernanda Abreu, cantando "Podes Crer, Amizade", de Toni Tornado.
Em seu repertório atual, há inéditas de Lenine e Zeca Baleiro; acaba de regravar "Cangoma", do repertório de Clementina de Jesus ("mãe de todos nós"), temperada com batidas eletrônicas. "Minha linguagem é a das percussões, dos tambores. Agora inseri a máquina, as bases eletrônicas."
Cris ousa no formato CD, em que a longa duração e o grande número de canções é regra. Seu álbum tem oito músicas em 30 minutos, só. "Não dá para pegar um artista desconhecido e entulhar o ouvinte de música. Ele vai cansar, não vai absorver tudo."
Nenhuma das duas sabe explicar a demora de sua geração em aparecer ao grande público.
"Demorei porque fiz muita doideira, viajei, era louca varrida de vassoura", diz Cris, pendendo ao individual. "Sempre me pergunto isso, não sei se é a razão econômica, o mercado. Acho que o estrelismo para nós não é mais importante. Estamos numa época em que estar vivo é que é importante", diz Arícia, pendendo ao individual.
A política de individualismo que a geração a que pertencem parece perseguir é também objeto de reflexão para elas. Arícia: "Os temas que me interessam são liberdade e amor. "Cangoma' diz isso: "Levanta negro, cativeiro já acabou'. Se cada um sai do seu cativeiro pessoal, todo mundo sai ganhando. Se você muda sua história, mexe no quadro geral".
Cris: "Minha política é essa: cuidado com pessoas como eu. Quero desmascarar essa coisa do sedutor e da vítima -acho que as vítimas são muito perigosas também. Pode ser uma questão individual, mas hoje é difícil se agregar, porque há muitas vertentes. O que agrega é objetivo em comum, que acho que hoje não há. E as agregações podem ser perigosas, podem ser inimigas delas mesmas".
Tal não resulta em apatia, para ela: "O que parece apatia pode ser gestação. Não haveria esse desejo de raiz de hoje se os 80 não tivessem sido tão fechados nas boates pretas. A coisa solar dos 90 estava sendo gestada no escuro dos 80".
Noutro ponto são uníssonas: rejeitam a denominação cunhada na imprensa carioca para uma movimentação que se avoluma no pop nacional, a "música popular carioca". "Isso é mais um título que uma característica, todo verão há uma historinha nova. É lamentável que o nome faça transparecer bairrismo, uma atitude do Rio de se isolar em si", afirma Cris.
"Comecei a ser citada numa coisa de que não estava participando. Não gosto do nome, acho que talvez restrinja, limite. Música não tem fronteira, tem é que transpor fronteiras. Não me sinto em partido nenhum, estou no mundo, estou na vida", emenda Arícia.
Vai além: "Isso bate na rivalidade entre Rio e São Paulo. Parece que agora é no Rio que as coisas estão acontecendo, mas a gente simplesmente não sabe o que acontece nos outros Estados. Na verdade, os desinformados somos nós, cariocas e paulistas".


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora PolyGram.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.