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As vozes da beirada do milênio
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio de Janeiro
A dois anos da troca de dígitos
no relógio dos milênios, a música
pop procura vozes que possam representar o início da era 2000.
Candidatas não faltam, e muitas,
no Brasil de hoje, resolveram estar
no Rio de Janeiro. Dessas, duas
saltam à frente em 1998: a de Cris
Braun e a de Arícia Mess.
Chegam trazendo peculiaridades
a um meio já inflacionado, o das
cantoras pop: são também compositoras e começam a lidar com o
mercado de maneira mais ou menos paralela à do esquemão institucionalizado pela indústria.
Fruto do Brasil globalizado, Cris
Braun é gaúcha-alagoana-carioca
(gaúcha até os 9 anos, alagoana
dos 9 aos 18 e carioca daí em diante), tem 35 anos e lança nos próximos dias seu disco de estréia,
"Cuidado com Pessoas Como Eu".
Egressa dos Sex Beatles (banda
pop liderada pelo compositor Alvin L., que lançou entre 93 e 95
dois discos sem grande repercussão comercial), é inauguradora do
selo Fullgás, da também cantora-compositora Marina Lima.
O selo é vinculado à "major"
PolyGram, mas, segundo Marina,
propósitos comerciais não são
prioritários. "É uma espécie de
cooperativa minha com a PolyGram, que me deu uma carta em
branco para contratar quem tiver
talento. É um trabalho ideológico
meu: quero lançar artistas comercialmente viáveis, mas criando um
ruído novo no mercado. O cenário
anda um pouco igual demais."
Arícia move-se no eixo Niterói-Rio (nasceu naquela, vive nessa), não revela a idade, mas diz
que bate mais ou menos com as
dos artistas da geração que desponta nos 90, quase toda composta de maiores de 30 anos.
Grava seu primeiro disco de forma independente -após anos de
burburinho não gravado em CD,
visitas de executivos de gravadoras em seu camarim e convites de
contratação declinados- e promete lançá-lo a todo custo neste
ano. Mas só quando terminar as
sessões de gravação vai atrás das
grandes corporações.
Cris Braun estréia apostando no
pop com inflexões eletrônicas ("de
trip hop, drum'n'bass, trip'n'bass,
sei lá, nunca sei esses nomes"),
que ela usa em covers inesperados
como os de "Brigas" (do repertório de Angela Maria e Agnaldo Timóteo) e "Bom Conselho", de
Chico Buarque.
"A música do Chico é muito
atual, é mais que rock'n'roll. Pode
ser tanto a posição de um cretino
como a de um revolucionário. É
essa ambiguidade que busco. Pode
ser ser um manifesto pela velocidade (eu não cantaria "eu quero
uma casa no campo...'), mas pode
ser também um "calma lá', um
chamado de atenção para o excesso de velocidade."
Velocidade, ao menos quanto à
condução da carreira, não é preocupação central de Arícia, que
acumulou longa experiência como
"backing vocal', secundando artistas díspares como Bebeto, Fernanda Abreu e Oswaldo Montenegro.
"Nunca vi uma vocalista virar
cantora. Mas houve uma hora em
que cansei, quis partir para a minha. E sabia que tinha que ser bacana, que não podia dar mole."
Atravessou a década sendo cultuada para poucos, despertando
curiosidade em flashes como uma
participação-relâmpago no disco
"Raio X" (97), de Fernanda Abreu,
cantando "Podes Crer, Amizade",
de Toni Tornado.
Em seu repertório atual, há inéditas de Lenine e Zeca Baleiro; acaba de regravar "Cangoma", do repertório de Clementina de Jesus
("mãe de todos nós"), temperada
com batidas eletrônicas. "Minha
linguagem é a das percussões, dos
tambores. Agora inseri a máquina,
as bases eletrônicas."
Cris ousa no formato CD, em
que a longa duração e o grande
número de canções é regra. Seu álbum tem oito músicas em 30 minutos, só. "Não dá para pegar um
artista desconhecido e entulhar o
ouvinte de música. Ele vai cansar,
não vai absorver tudo."
Nenhuma das duas sabe explicar
a demora de sua geração em aparecer ao grande público.
"Demorei porque fiz muita doideira, viajei, era louca varrida de
vassoura", diz Cris, pendendo ao
individual. "Sempre me pergunto
isso, não sei se é a razão econômica, o mercado. Acho que o estrelismo para nós não é mais importante. Estamos numa época em que
estar vivo é que é importante", diz
Arícia, pendendo ao individual.
A política de individualismo que
a geração a que pertencem parece
perseguir é também objeto de reflexão para elas. Arícia: "Os temas
que me interessam são liberdade e
amor. "Cangoma' diz isso: "Levanta negro, cativeiro já acabou'. Se
cada um sai do seu cativeiro pessoal, todo mundo sai ganhando.
Se você muda sua história, mexe
no quadro geral".
Cris: "Minha política é essa: cuidado com pessoas como eu. Quero
desmascarar essa coisa do sedutor
e da vítima -acho que as vítimas
são muito perigosas também. Pode ser uma questão individual,
mas hoje é difícil se agregar, porque há muitas vertentes. O que
agrega é objetivo em comum, que
acho que hoje não há. E as agregações podem ser perigosas, podem
ser inimigas delas mesmas".
Tal não resulta em apatia, para
ela: "O que parece apatia pode ser
gestação. Não haveria esse desejo
de raiz de hoje se os 80 não tivessem sido tão fechados nas boates
pretas. A coisa solar dos 90 estava
sendo gestada no escuro dos 80".
Noutro ponto são uníssonas: rejeitam a denominação cunhada na
imprensa carioca para uma movimentação que se avoluma no pop
nacional, a "música popular carioca". "Isso é mais um título que
uma característica, todo verão há
uma historinha nova. É lamentável que o nome faça transparecer
bairrismo, uma atitude do Rio de
se isolar em si", afirma Cris.
"Comecei a ser citada numa coisa de que não estava participando.
Não gosto do nome, acho que talvez restrinja, limite. Música não
tem fronteira, tem é que transpor
fronteiras. Não me sinto em partido nenhum, estou no mundo, estou na vida", emenda Arícia.
Vai além: "Isso bate na rivalidade entre Rio e São Paulo. Parece
que agora é no Rio que as coisas
estão acontecendo, mas a gente
simplesmente não sabe o que
acontece nos outros Estados. Na
verdade, os desinformados somos
nós, cariocas e paulistas".
O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a
convite da gravadora PolyGram.
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