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LIVRO
Obra reúne textos sobre a história do teatro Oficina entre 1958 e 1974
José Celso Corrêa conta sua trajetória teatral alucinada
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Em meados
dos anos 80, era
possível ver José
Celso Martinez
Corrêa esbravejando contra o
que na época,
quando a coisa já começava a se
disseminar e diluir pelo mercado
cultural internacional, ainda se
costumava chamar de "teatro de
imagens". O termo tinha sido cunhado para definir o teatro de Bob
Wilson, antes de ele se tornar uma
espécie de paradigma de modernidade, um modelo com seguidores
por toda parte, inclusive no Brasil.
Na época, ouvindo o mentor do
Oficina atacar um teatro diferente
do que ele fazia, apenas por ser
mais contemplativo, era possível
achar até que Zé Celso era burro
(ou tinha ficado), estava gagá, tinha perdido o trem do seu tempo e
agora esbravejava como um velho
ressentido com o sucesso alheio.
Dez anos se passaram e, hoje,
depois desse "teatro de imagens"
ter se tornado um lugar-comum
do bom gosto, e diante do lançamento, pela editora 34, de "Primeiro Ato - Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974)", de
Zé Celso, com organização de Ana
Helena Camargo de Staal, é possível compreender o quanto, com
todas as suas contradições, limites, falhas e fraquezas, este continua sendo um dos pensamentos
mais ricos e férteis da história do
teatro brasileiro.
"Primeiro Ato" reúne textos sobre os principais acontecimentos
da história do Oficina entre 58,
ano da formação do núcleo fundador, e 74, que marca o fim de um
ciclo e a desestruturação do teatro,
após a invasão da polícia e a prisão
de vários atores.
São provavelmente os anos, senão mais importantes, pelo menos
mais espetaculares do Oficina.
Uma espécie de primeiro tempo
-ou ato. Os anos de "O Rei da Vela", "Roda Viva", "Galileu Galilei", "As Três Irmãs" etc.
Isso não quer dizer que todos os
textos aí reunidos tenham sido escritos (alguns são inéditos: diários, cadernos, desabafos, manifestos) ou publicados no período.
É o caso do extraordinário depoimento gravado em vídeo pelos estudantes de teatro André Guerreiro Lopes, Graziela Kunsch, Olga
Maria e Simone Kliss, em 1995, sobre a conturbada montagem de
"As Três Irmãs", de Tchecov, no
final de 1972. Esse texto contém algumas das passagens mais emocionantes e sensíveis de tudo o que
já se disse ou escreveu, em todos
os tempos, sobre teatro no Brasil.
É possível ler "Tchecov é um Cogumelo" (o belo título dado ao depoimento) com lágrimas nos
olhos. E, ao final, ter medo de continuar lendo os outros textos diante da probabilidade de que nada
dali para a frente possa estar à altura. Isso diz menos sobre a qualidade do que se segue (há documentos de grande valor histórico e
sentimental para a compreensão
da cultura brasileira nas últimas
décadas etc.) do que sobre o caráter totalmente excepcional desse
depoimento recente, que expõe,
com uma maturidade irrepreensível, uma beleza e uma integridade
num projeto artístico e de vida raramente vistas.
Para quem acha que Zé Celso é
apenas um chato e um porra-louca (o que ele também pode ser),
esse é um texto esclarecedor. E não
apenas por tratar em grande parte
de uma experiência alucinógena
com o teatro. Por trás do relato
dos ensaios de "As Três Irmãs" à
base de ácidos, o que se revela é
uma relação de uma intensidade
literalmente alucinada com o teatro. Fica claro que para Zé Celso, a
exemplo de Artaud, mas também
por outras vias que lhe são exclusivas, o teatro não é algo a ser representado, mas vivido.
E o mais curioso é que essa posição lhe garante uma compreensão
totalmente original de tudo aquilo
em que toca, tanto de um texto de
Tchecov, um autor que aparentemente nada tem a ver com a "viagem" do Oficina, como de Beckett
ou Stanislavski.
O que ele diz sobre o "tempo
real" ou a natureza em Tchecov, a
partir da experiência alucinógena
dos ensaios de "As Três Irmãs",
além de ser de uma pertinência a
toda prova, joga uma luz reveladora sobre o autor russo, produzindo centelhas que anos de estudo podem jamais alcançar.
Fora isso, a generosidade com
que se dirige aos estudantes de teatro, dividindo as conclusões dessa
experiência de anos de trabalho, é
no mínimo comovente na forma
como honra a sua verdade, desviando dos clichês e frases feitas:
"Estou falando para vocês como
um índio fala a um antropólogo.
(...) Só se pode entender uma peça
(...), se ela transforma a nossa vida
(...), como foi, é e será o que aconteceu comigo em "As Três Irmãs'".
É possível que o leitor fique intrigado com o que pode levar um
resenhista a se ater a um único texto de dez páginas num livro de
mais de 300. Mas cada um traça os
seus próprios caminhos para a
surpresa e o deslumbramento. E é
difícil imaginar um leitor que não
encontrará os seus num livro como esse, que oferece tantos.
Livro: Primeiro Ato - Cadernos,
Depoimentos, Entrevistas (1958-1974)
Autor: José Celso Martinez Corrêa
Organização: Ana Helena C. de Staal
Lançamento: editora 34
Quanto: R$ 29 (335 págs.)
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