São Paulo, quinta, 26 de março de 1998

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LIVRO
Obra reúne textos sobre a história do teatro Oficina entre 1958 e 1974
José Celso Corrêa conta sua trajetória teatral alucinada

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Em meados dos anos 80, era possível ver José Celso Martinez Corrêa esbravejando contra o que na época, quando a coisa já começava a se disseminar e diluir pelo mercado cultural internacional, ainda se costumava chamar de "teatro de imagens". O termo tinha sido cunhado para definir o teatro de Bob Wilson, antes de ele se tornar uma espécie de paradigma de modernidade, um modelo com seguidores por toda parte, inclusive no Brasil.
Na época, ouvindo o mentor do Oficina atacar um teatro diferente do que ele fazia, apenas por ser mais contemplativo, era possível achar até que Zé Celso era burro (ou tinha ficado), estava gagá, tinha perdido o trem do seu tempo e agora esbravejava como um velho ressentido com o sucesso alheio.
Dez anos se passaram e, hoje, depois desse "teatro de imagens" ter se tornado um lugar-comum do bom gosto, e diante do lançamento, pela editora 34, de "Primeiro Ato - Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974)", de Zé Celso, com organização de Ana Helena Camargo de Staal, é possível compreender o quanto, com todas as suas contradições, limites, falhas e fraquezas, este continua sendo um dos pensamentos mais ricos e férteis da história do teatro brasileiro.
"Primeiro Ato" reúne textos sobre os principais acontecimentos da história do Oficina entre 58, ano da formação do núcleo fundador, e 74, que marca o fim de um ciclo e a desestruturação do teatro, após a invasão da polícia e a prisão de vários atores.
São provavelmente os anos, senão mais importantes, pelo menos mais espetaculares do Oficina. Uma espécie de primeiro tempo -ou ato. Os anos de "O Rei da Vela", "Roda Viva", "Galileu Galilei", "As Três Irmãs" etc.
Isso não quer dizer que todos os textos aí reunidos tenham sido escritos (alguns são inéditos: diários, cadernos, desabafos, manifestos) ou publicados no período. É o caso do extraordinário depoimento gravado em vídeo pelos estudantes de teatro André Guerreiro Lopes, Graziela Kunsch, Olga Maria e Simone Kliss, em 1995, sobre a conturbada montagem de "As Três Irmãs", de Tchecov, no final de 1972. Esse texto contém algumas das passagens mais emocionantes e sensíveis de tudo o que já se disse ou escreveu, em todos os tempos, sobre teatro no Brasil.
É possível ler "Tchecov é um Cogumelo" (o belo título dado ao depoimento) com lágrimas nos olhos. E, ao final, ter medo de continuar lendo os outros textos diante da probabilidade de que nada dali para a frente possa estar à altura. Isso diz menos sobre a qualidade do que se segue (há documentos de grande valor histórico e sentimental para a compreensão da cultura brasileira nas últimas décadas etc.) do que sobre o caráter totalmente excepcional desse depoimento recente, que expõe, com uma maturidade irrepreensível, uma beleza e uma integridade num projeto artístico e de vida raramente vistas.
Para quem acha que Zé Celso é apenas um chato e um porra-louca (o que ele também pode ser), esse é um texto esclarecedor. E não apenas por tratar em grande parte de uma experiência alucinógena com o teatro. Por trás do relato dos ensaios de "As Três Irmãs" à base de ácidos, o que se revela é uma relação de uma intensidade literalmente alucinada com o teatro. Fica claro que para Zé Celso, a exemplo de Artaud, mas também por outras vias que lhe são exclusivas, o teatro não é algo a ser representado, mas vivido.
E o mais curioso é que essa posição lhe garante uma compreensão totalmente original de tudo aquilo em que toca, tanto de um texto de Tchecov, um autor que aparentemente nada tem a ver com a "viagem" do Oficina, como de Beckett ou Stanislavski.
O que ele diz sobre o "tempo real" ou a natureza em Tchecov, a partir da experiência alucinógena dos ensaios de "As Três Irmãs", além de ser de uma pertinência a toda prova, joga uma luz reveladora sobre o autor russo, produzindo centelhas que anos de estudo podem jamais alcançar.
Fora isso, a generosidade com que se dirige aos estudantes de teatro, dividindo as conclusões dessa experiência de anos de trabalho, é no mínimo comovente na forma como honra a sua verdade, desviando dos clichês e frases feitas: "Estou falando para vocês como um índio fala a um antropólogo. (...) Só se pode entender uma peça (...), se ela transforma a nossa vida (...), como foi, é e será o que aconteceu comigo em "As Três Irmãs'".
É possível que o leitor fique intrigado com o que pode levar um resenhista a se ater a um único texto de dez páginas num livro de mais de 300. Mas cada um traça os seus próprios caminhos para a surpresa e o deslumbramento. E é difícil imaginar um leitor que não encontrará os seus num livro como esse, que oferece tantos.

Livro: Primeiro Ato - Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974) Autor: José Celso Martinez Corrêa Organização: Ana Helena C. de Staal Lançamento: editora 34 Quanto: R$ 29 (335 págs.)



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