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GASTRONOMIA
Novo milênio traz apetite
por nossas raízes regionais
NINA HORTA
Colunista da Folha
Nada como a chegada de um novo milênio para que seja estabelecido um assanhamento geral, como se o mundo fosse acabar. "Minhas origens, nossas origens", gritam todos. "Meu reino por minhas
raízes!"
Não podemos embicar no ano
2000 sem saber direitinho a diferença entre o cará, o inhame, a
mandioca mansa e a brava.
Navegantes sem bússola no meio
da imensa fauna e flora do Brasil,
queremos remediar as coisas pelo
menos para não comer salmão
com endívia e purê de oseille no réveillon do milênio.
Podemos ler para ficar mais bem
informados. O que, no caso, já não
é pouco. Em matéria de livros começamos por onde todos os países
acabam.
Já temos a obra definitiva sobre
comida no Brasil, os dois calhamaços eruditos do assombroso Câmara Cascudo, "História da Alimentação no Brasil" (Edusp). Explicou quase tudo, pelo menos tocou no que era mais importante, é
a referência máxima.
O que nos resta para saciar essa
curiosidade milenarista, como
completar, como somar, corrigir,
aventar novas hipóteses? Imagino
perguntas assim, que admitam
respostas variadas, vindas de todos os lugares do Brasil. O que comemos e o que não comemos? Por
quê? Quais são nossos ingredientes
básicos, quais os preparos típicos e
privilegiados?
É claro que cada um sabe melhor
do seu próprio canto, do seu quintal, do seu "terroir" para falarmos
francês, até do seu terreiro, para
continuarmos em português.
Um país só pode se gabar de ter
uma "cuisine" quando uma comunidade entende plenamente aquilo
que come, sabe como se faz, percebe as diferenças no preparo, entende da compra - hoje está mais
mole, ontem esteve mais sem sal, o
feijão está desmanchando porque
muito novo -, e além de tudo
conversa sobre o assunto, trocam-se idéias.
E como evoluiu nossa comida regional? Quais os padrões de cada
área? A comida é variada, monótona? Influências possíveis dos imigrantes. Quem comeu quem? O
imigrante nos devorou ou nós deturpamos e acabamos com a comida dele?
Bem, com o assunto raízes esgotado, passamos à tecnologia, ao
crescimento urbano, à produção
comercial e industrial. Como eram
as fazendas antes e depois das novas técnicas de plantio? E o transporte, como foi que o transporte
mudou nossa dieta? E por que até
hoje não conseguimos comer os
dulcíssimos mangostões, os rambutans de sonho que se comem no
Pará?
A que horas e a que momento industrializou-se a farinha de mandioca, o fubá, a galinha ciscando na
varanda, o porco patinando na lama do chiqueiro? E as latas e vidros
guardando nossas frutas e legumes?
Nestas e noutras, onde foi parar a
doçaria vinda dos conventos portugueses, aqueles docinhos de casamento de uma delicadeza de
monjas que sumiram para não voltar mais?
Essa técnica, acho que está extinta. Tenho uma cunhada que ainda
sabe os segredos, mas aos poucos
desanimou de ensinar, e vender
nem pensar, que nada paga o trabalho daquelas obras-primas de
sutileza.
E, quando a mulher saiu de casa,
o que se ganhou, o que se perdeu?
O hipermercado terá mudado nosso jeito de ser? Na cidade? No interior? E os restaurantes? E o fast-food? Por que não conseguimos
ainda encontrar um conceito de
fast-food brasileiro?
E o gosto adquirido? De açafrão,
de uísque, de peixe cru. Já nos familiarizamos com alguns gostos
estranhos, virão outros, será que
poderemos nos familiarizar com
todos?
O Senac é um destes aflitos diante do milênio. Já publicou quatro
livros de comidas regionais experimentadas nos seus restaurantes:
Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e agora São Paulo.
O pesquisador de São Paulo foi
Caloca Fernandes, trazendo muitas respostas às perguntas acima e
muita receita de comida boa e caipira.
Ele abre a porteira contando da
influência indígena na comida
paulista, detém-se bastante na comida tropeira, aquela do bandeirante rude que saía a procurar esmeraldas que podia achar ou não.
Mas o que achava mesmo era seu
farnel de guisado de galinha, feijão
e farofa todo revirado no guardanapo que o guardava. Daí o virado
tão querido dos paulistas e também dos mineiros.
Caloca andou por Caçapava, visitou Silveiras, onde fica a Fundação
Nacional do Tropeirismo e suponho que lá tenha papado a comida
da Fia, que faz de tudo o melhor. O
arroz de amendoim, o frango com
coalhada, os lambaris fritos, farofa
de torresmo, quirera com arroz,
feijão e couve, tudo no fogão de lenha, com uma graça e uma beleza...
O pesquisador Caloca não contou, mas pelo jeito andou embrenhado por cadernos de sinhazinhas doceiras, tantos os queques e
biscoitos, sem contar as mesas de
fazendas paulistas, bem-postas,
brasonadas - onde com certeza
conheceu o cuscuz de farinha de
mandioca e chegou à conclusão de
que podemos enfrentar o milênio
com carteira de identidade paulista e brasileira. Rocambole de inhame e camarão...Uhmmm. Adiante,
Brasil!
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