São Paulo, Sexta-feira, 26 de Março de 1999
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GASTRONOMIA
Novo milênio traz apetite por nossas raízes regionais


NINA HORTA
Colunista da Folha

Nada como a chegada de um novo milênio para que seja estabelecido um assanhamento geral, como se o mundo fosse acabar. "Minhas origens, nossas origens", gritam todos. "Meu reino por minhas raízes!"
Não podemos embicar no ano 2000 sem saber direitinho a diferença entre o cará, o inhame, a mandioca mansa e a brava.
Navegantes sem bússola no meio da imensa fauna e flora do Brasil, queremos remediar as coisas pelo menos para não comer salmão com endívia e purê de oseille no réveillon do milênio.
Podemos ler para ficar mais bem informados. O que, no caso, já não é pouco. Em matéria de livros começamos por onde todos os países acabam.
Já temos a obra definitiva sobre comida no Brasil, os dois calhamaços eruditos do assombroso Câmara Cascudo, "História da Alimentação no Brasil" (Edusp). Explicou quase tudo, pelo menos tocou no que era mais importante, é a referência máxima.
O que nos resta para saciar essa curiosidade milenarista, como completar, como somar, corrigir, aventar novas hipóteses? Imagino perguntas assim, que admitam respostas variadas, vindas de todos os lugares do Brasil. O que comemos e o que não comemos? Por quê? Quais são nossos ingredientes básicos, quais os preparos típicos e privilegiados?
É claro que cada um sabe melhor do seu próprio canto, do seu quintal, do seu "terroir" para falarmos francês, até do seu terreiro, para continuarmos em português.
Um país só pode se gabar de ter uma "cuisine" quando uma comunidade entende plenamente aquilo que come, sabe como se faz, percebe as diferenças no preparo, entende da compra - hoje está mais mole, ontem esteve mais sem sal, o feijão está desmanchando porque muito novo -, e além de tudo conversa sobre o assunto, trocam-se idéias.
E como evoluiu nossa comida regional? Quais os padrões de cada área? A comida é variada, monótona? Influências possíveis dos imigrantes. Quem comeu quem? O imigrante nos devorou ou nós deturpamos e acabamos com a comida dele?
Bem, com o assunto raízes esgotado, passamos à tecnologia, ao crescimento urbano, à produção comercial e industrial. Como eram as fazendas antes e depois das novas técnicas de plantio? E o transporte, como foi que o transporte mudou nossa dieta? E por que até hoje não conseguimos comer os dulcíssimos mangostões, os rambutans de sonho que se comem no Pará?
A que horas e a que momento industrializou-se a farinha de mandioca, o fubá, a galinha ciscando na varanda, o porco patinando na lama do chiqueiro? E as latas e vidros guardando nossas frutas e legumes?
Nestas e noutras, onde foi parar a doçaria vinda dos conventos portugueses, aqueles docinhos de casamento de uma delicadeza de monjas que sumiram para não voltar mais?
Essa técnica, acho que está extinta. Tenho uma cunhada que ainda sabe os segredos, mas aos poucos desanimou de ensinar, e vender nem pensar, que nada paga o trabalho daquelas obras-primas de sutileza.
E, quando a mulher saiu de casa, o que se ganhou, o que se perdeu? O hipermercado terá mudado nosso jeito de ser? Na cidade? No interior? E os restaurantes? E o fast-food? Por que não conseguimos ainda encontrar um conceito de fast-food brasileiro?
E o gosto adquirido? De açafrão, de uísque, de peixe cru. Já nos familiarizamos com alguns gostos estranhos, virão outros, será que poderemos nos familiarizar com todos?
O Senac é um destes aflitos diante do milênio. Já publicou quatro livros de comidas regionais experimentadas nos seus restaurantes: Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e agora São Paulo.
O pesquisador de São Paulo foi Caloca Fernandes, trazendo muitas respostas às perguntas acima e muita receita de comida boa e caipira.
Ele abre a porteira contando da influência indígena na comida paulista, detém-se bastante na comida tropeira, aquela do bandeirante rude que saía a procurar esmeraldas que podia achar ou não. Mas o que achava mesmo era seu farnel de guisado de galinha, feijão e farofa todo revirado no guardanapo que o guardava. Daí o virado tão querido dos paulistas e também dos mineiros.
Caloca andou por Caçapava, visitou Silveiras, onde fica a Fundação Nacional do Tropeirismo e suponho que lá tenha papado a comida da Fia, que faz de tudo o melhor. O arroz de amendoim, o frango com coalhada, os lambaris fritos, farofa de torresmo, quirera com arroz, feijão e couve, tudo no fogão de lenha, com uma graça e uma beleza...
O pesquisador Caloca não contou, mas pelo jeito andou embrenhado por cadernos de sinhazinhas doceiras, tantos os queques e biscoitos, sem contar as mesas de fazendas paulistas, bem-postas, brasonadas - onde com certeza conheceu o cuscuz de farinha de mandioca e chegou à conclusão de que podemos enfrentar o milênio com carteira de identidade paulista e brasileira. Rocambole de inhame e camarão...Uhmmm. Adiante, Brasil!


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