São Paulo, Sexta-feira, 26 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Maldoror" é um suplício

do enviado a Curitiba

Há uma estrofe, no segundo dos "Cantos de Maldoror", do poeta romântico francês Conde de Lautréamont (1846-70), em que ele descreve um "ônibus". É provavelmente o que inspirou todo o início do espetáculo de mesmo título, em Curitiba.
Naquela estrofe, dentro do ônibus, homens que "se assemelham a cadáveres" negam caridade a uma criança. E Lautréamont/Maldoror proclama: "Minha poesia não consistirá em outra coisa senão atacar, por todos os meios, o homem, essa besta-fera".
Quando começa a peça "Os Cantos de Maldoror", o espectador está num ônibus de verdade, a caminho de um lugar desconhecido. Chega a uma chácara e é levado a assistir, propriamente, à versão cênica dos "Cantos".
Maldoror, no palco, decide praticar os atos mais viciosos contra o ser humano.
E lá está o espectador, sentado numa sala perdida no mato, vendo uma menina ser (cenicamente) estuprada e estripada a partir da vagina, entre incontáveis cenas do gênero. E o espectador não tem como fugir!
A peça não é como a poesia de Lautréamont. Os episódios encenados estão nos "Cantos", mas carregados, no original, de uma ironia, de um humor negro que torna a leitura prazerosa.
Já "Os Cantos de Maldoror", a peça, é um suplício para o público. Toma Lautréamont literalmente e se esforça por "atacar por todos os meios" o espectador.
O original, editado em 97 pela Iluminuras, é pleno de passagens como: "Maldoror reparou que havia nascido mau: fatalidade extraordinária! Lançou-se resolutamente na carreira do mal. Atmosfera doce! Quem diria!".
Já a encenação nem tenta a ironia: é agressão aberta, por vezes aos berros, em cenas de escândalo.
A coragem de encenar Lautréamont não basta, como não bastava, oito anos atrás, a coragem de encenar "Sades ou Noites com os Professores Imorais" -em que uma atriz urinava sobre um ator. A companhia Os Satyros, na verdade, torna "Os Cantos de Maldoror" um vômito de "maus" atores, "mau" adaptador, "mau" encenador.
E o público, recorrendo a um verso dos "Cantos", "não pode sair. Prisão terrível! Fatalidade horrenda!".
(NS)


Texto Anterior: Críticas: "Dr. Alvarenga" não é nenhuma "Pérola"
Próximo Texto: "Sonho" vira jogral
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.