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LITERATURA
Em "A Cadeira da Águia", escritor narra a situação de seu país em 2020; sem comunicações, todos se correspondem por cartas
Carlos Fuentes critica elite política mexicana
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
"Vi os costumes do meu tempo e
publiquei estas cartas." Esse famoso prefácio de Jean-Jacques Rousseau, escrito em 1761, poderia integrar "A Cadeira da Águia" (ed.
Rocco, 332 págs., R$ 40), que está
sendo lançado pelo mexicano Carlos Fuentes, 76. A obra faz uma crítica mordaz à elite política mexicana. A cadeira do título é uma alusão ao posto de presidente do México, disputado por funcionários
públicos, agregados e amantes.
O romance é inspirado em "Relações Perigosas", um dos grandes
romances epistolares do século 18,
que escandalizou a França pré-revolucionária. Fuentes, um dos
mais importantes romancistas e
ensaístas do mundo hispânico,
autor de "Aura" (L&PM) e "A
Morte de Artemio Cruz" (Rocco),
também se inspira em Maquiavel
e em Carl von Clausewitz (autor
do clássico "Da Guerra") para narrar o México do futuro, em 2020.
Sem comunicações, todos no país
são obrigados a se corresponder
por cartas, que mesclam política,
sexo, corrupção e sedução. Leia a
seguir trechos da entrevista.
Folha - Como "A Cadeira da
Águia" se baseou em "Relações Perigosas", de Choderlos de Laclos?
Carlos Fuentes - Meu livro é muito parecido formalmente com
"Relações Perigosas", é um romance epistolar. É claro que "Relações Perigosas" não é o único
grande romance epistolar, há
"Clarissa", de Samuel Richardson
[1689-1761], e foi também um gênero muito usado no início do
moderno romance inglês. Mas
quis usar uma concepção do início
do século 18, já que a idéia do romance é que o México ficou incomunicável com o resto do mundo,
devido à decisão dos EUA de cortar todas as comunicações por satélite do país, então não há a possibilidade de comunicação, a não
ser escrever cartas.
Folha - O sr. não mostra uma visão
muito pessimista do futuro? Dependência dos EUA, corrupção, greves,
massacre de camponeses...
Fuentes - A América Latina está
cheia de problemas. Parece que estamos o tempo todo flutuando,
tentando ficar com a cabeça acima
da linha de água. Há problemas
em vários países. A democracia está lá, mas as pessoas começam a se
questionar. Sim, agora temos eleições livres, imprensa livre, mas...
quando começamos a comer?
Quando resolveremos nossos problemas sociais e econômicos? Isso
traz uma insatisfação com a democracia. Então não acho que seja
um quadro muito bonito. O que
vejo é que as sociedades evoluíram
muito. A sociedade civil é cada vez
mais forte e, mesmo que os regimes democráticos falhem, a sociedade vai continuar o processo democrático. Enquanto você tem
uma sociedade civil forte, acho
que o futuro da democracia está
assegurado. E existe uma tensão
interessante. É nela que "A Cadeira da Águia" se baseia. A tensão, a
possibilidade de fracasso, a possibilidade de renovação de todo o
quadro político.
Folha - No seu livro, Condoleezza
Rice em 2020 será a presidente dos
EUA e provocará o colapso nas comunicações mexicanas. O sr. é um crítico da atual política americana, escreveu "Contra Bush" e esteve na lista negra do macarthismo, na década
de 50. Como o sr. vê o país?
Fuentes - Os EUA, felizmente,
não ligam a mínima para a América Latina atualmente. Estão olhando para outros lugares. Sempre
que olham para a América Latina,
nós trememos, porque isso significa intervenção e políticas equivocadas. Acho que há muito perigo
na política atual de Bush, com unilateralismo, guerra preventiva,
desrespeito a tratados internacionais, desrespeito ao Protocolo de
Kyoto... A política atual é a do terror, do patriotismo, do fundamentalismo religioso. Isso é um
coquetel perigoso para os EUA,
para os direitos civis e para o mundo. Mas sou otimista, acredito que
Europa, China, Japão e outros países estão crescendo economicamente e que haverá um sistema
multipolar de poder.
Folha - O sr. divide sua atividade
de ficcionista com a de ensaísta.
Como o sr. vê as comemorações dos
400 anos da publicação de "Dom
Quixote", neste ano? O sr. já declarou que Machado de Assis era o
"Cervantes das Américas"...
Fuentes - "Dom Quixote" é a
obra fundadora do romance moderno porque deixa todos os antigos gêneros para trás e estabelece
um diálogo entre gêneros. O épico, o picaresco, o diário, o romance dentro do romance, todos aparecem em "Dom Quixote". A obra
é seguida pelo que chamo de "tradição de la Mancha", que teria entre seus principais expoentes Diderot [1713-1784]. Daí a tradição
mudou. Não era mais o romance
se criando, falando com si mesmo
e se expondo com grande liberdade. Transformou-se no romance
realista, baseado nas figuras do
período napoleônico como Balzac [1799-1850] e Stendhal [1783-1842]. Mas existiu uma grande exceção, que foi Machado de Assis
[1839-1908]. Ele pegou a grande
tradição de "Dom Quixote", em
seu "Memórias Póstumas de Brás
Cubas", e a atualizou até os nossos dias, levando a Jorge Luis Borges [1899-1986] e a Gabriel García
Márquez [1928]. Hoje, a redescoberta de "Dom Quixote" é o trabalho de vários romancistas que
reconheceram essa herança.
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