São Paulo, terça-feira, 26 de abril de 2005

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LITERATURA

Em "A Cadeira da Águia", escritor narra a situação de seu país em 2020; sem comunicações, todos se correspondem por cartas

Carlos Fuentes critica elite política mexicana

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

"Vi os costumes do meu tempo e publiquei estas cartas." Esse famoso prefácio de Jean-Jacques Rousseau, escrito em 1761, poderia integrar "A Cadeira da Águia" (ed. Rocco, 332 págs., R$ 40), que está sendo lançado pelo mexicano Carlos Fuentes, 76. A obra faz uma crítica mordaz à elite política mexicana. A cadeira do título é uma alusão ao posto de presidente do México, disputado por funcionários públicos, agregados e amantes.
O romance é inspirado em "Relações Perigosas", um dos grandes romances epistolares do século 18, que escandalizou a França pré-revolucionária. Fuentes, um dos mais importantes romancistas e ensaístas do mundo hispânico, autor de "Aura" (L&PM) e "A Morte de Artemio Cruz" (Rocco), também se inspira em Maquiavel e em Carl von Clausewitz (autor do clássico "Da Guerra") para narrar o México do futuro, em 2020. Sem comunicações, todos no país são obrigados a se corresponder por cartas, que mesclam política, sexo, corrupção e sedução. Leia a seguir trechos da entrevista.

 

Folha - Como "A Cadeira da Águia" se baseou em "Relações Perigosas", de Choderlos de Laclos?
Carlos Fuentes -
Meu livro é muito parecido formalmente com "Relações Perigosas", é um romance epistolar. É claro que "Relações Perigosas" não é o único grande romance epistolar, há "Clarissa", de Samuel Richardson [1689-1761], e foi também um gênero muito usado no início do moderno romance inglês. Mas quis usar uma concepção do início do século 18, já que a idéia do romance é que o México ficou incomunicável com o resto do mundo, devido à decisão dos EUA de cortar todas as comunicações por satélite do país, então não há a possibilidade de comunicação, a não ser escrever cartas.

Folha - O sr. não mostra uma visão muito pessimista do futuro? Dependência dos EUA, corrupção, greves, massacre de camponeses...
Fuentes -
A América Latina está cheia de problemas. Parece que estamos o tempo todo flutuando, tentando ficar com a cabeça acima da linha de água. Há problemas em vários países. A democracia está lá, mas as pessoas começam a se questionar. Sim, agora temos eleições livres, imprensa livre, mas... quando começamos a comer? Quando resolveremos nossos problemas sociais e econômicos? Isso traz uma insatisfação com a democracia. Então não acho que seja um quadro muito bonito. O que vejo é que as sociedades evoluíram muito. A sociedade civil é cada vez mais forte e, mesmo que os regimes democráticos falhem, a sociedade vai continuar o processo democrático. Enquanto você tem uma sociedade civil forte, acho que o futuro da democracia está assegurado. E existe uma tensão interessante. É nela que "A Cadeira da Águia" se baseia. A tensão, a possibilidade de fracasso, a possibilidade de renovação de todo o quadro político.

Folha - No seu livro, Condoleezza Rice em 2020 será a presidente dos EUA e provocará o colapso nas comunicações mexicanas. O sr. é um crítico da atual política americana, escreveu "Contra Bush" e esteve na lista negra do macarthismo, na década de 50. Como o sr. vê o país?
Fuentes -
Os EUA, felizmente, não ligam a mínima para a América Latina atualmente. Estão olhando para outros lugares. Sempre que olham para a América Latina, nós trememos, porque isso significa intervenção e políticas equivocadas. Acho que há muito perigo na política atual de Bush, com unilateralismo, guerra preventiva, desrespeito a tratados internacionais, desrespeito ao Protocolo de Kyoto... A política atual é a do terror, do patriotismo, do fundamentalismo religioso. Isso é um coquetel perigoso para os EUA, para os direitos civis e para o mundo. Mas sou otimista, acredito que Europa, China, Japão e outros países estão crescendo economicamente e que haverá um sistema multipolar de poder.

Folha - O sr. divide sua atividade de ficcionista com a de ensaísta. Como o sr. vê as comemorações dos 400 anos da publicação de "Dom Quixote", neste ano? O sr. já declarou que Machado de Assis era o "Cervantes das Américas"...
Fuentes -
"Dom Quixote" é a obra fundadora do romance moderno porque deixa todos os antigos gêneros para trás e estabelece um diálogo entre gêneros. O épico, o picaresco, o diário, o romance dentro do romance, todos aparecem em "Dom Quixote". A obra é seguida pelo que chamo de "tradição de la Mancha", que teria entre seus principais expoentes Diderot [1713-1784]. Daí a tradição mudou. Não era mais o romance se criando, falando com si mesmo e se expondo com grande liberdade. Transformou-se no romance realista, baseado nas figuras do período napoleônico como Balzac [1799-1850] e Stendhal [1783-1842]. Mas existiu uma grande exceção, que foi Machado de Assis [1839-1908]. Ele pegou a grande tradição de "Dom Quixote", em seu "Memórias Póstumas de Brás Cubas", e a atualizou até os nossos dias, levando a Jorge Luis Borges [1899-1986] e a Gabriel García Márquez [1928]. Hoje, a redescoberta de "Dom Quixote" é o trabalho de vários romancistas que reconheceram essa herança.

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