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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
O pintor e o fim do limbo
Felizmente ainda temos o Homem-Aranha, o Super-Homem, a batcaverna, o Arctic Monkeys e o Saci
DESCIA a rampa do pavilhão da
Bienal quando o pintor veio
em minha direção. Geração
60, estiloso, idéias longas, cabelos
já nem tanto. Abraçou-me e logo
bradou: "Estou me sentindo na Idade Média".
Estávamos na SP Arte, a movimentada feira paulistana de galerias, e relacionei o comentário a essa
manifestação arquetípica do mercado, que florescia nos idos medievais.
Mas, como tudo ali na feira me parecia, na verdade, um reflexo periférico (como diria dona Rosa, minha
saudosa professora comunista) do
admirável capitalismo novo em que
vivemos, retruquei em irônico chavão economês: "Acho que está mais
para excesso de liquidez".
O pintor sorriu e prontamente esclareceu. Não era à feira que se referia. "Não, não estou falando disso
aqui, mas da notícia que li no alto da
primeira página da Folha: o Vaticano vai acabar com o limbo! Fiquei
pensando: será que acordei na Idade Média?" E gargalhou.
Compreensível. Afinal, quando
ninguém dava a mínima para o assunto, eis que o Vaticano coloca em
dúvida uma crença nascida há 800
anos.
Pensei aliviado: felizmente ainda
temos o Homem-Aranha, o Super-Homem, a batcaverna, o Arctic
Monkeys e o Saci Pererê. Mas logo
fui percebendo que a questão era
grave e envolvia uma série de complicações.
Logo imaginei um problema de
logística transcendental: como se
daria o traslado das almas do limbo
para o paraíso? Ou a nova lei só valerá para quem venha a morrer sob
ela? Ou não é nada disso: Deus já
havia designado que as crianças
sem batismo iriam para o céu, mas
o clero errou ao dar corda para essa
conversa de limbo.
Não sei. A própria igreja admite
que "não tem conhecimento absoluto sobre a salvação das crianças
não batizadas". Segundo a notícia,
"a conclusão a que os 29 membros
da comissão chegaram, e que foi ratificada por Bento 16, é justamente
a de que, muito possivelmente, a
criança morta antes do batizado
será salva -vai para o paraíso".
Muito possivelmente.
Se, por um momento, o assunto
nos causou a sensação de vivermos
no mundo encantado do medievo,
logo, o pintor e eu, voltamos à realidade. Tomamos um café e fomos
ver obras dessa arte que que há séculos já não é mais produzida sob o
manto da religião, rompeu com todos os cânones e agora floresce
num mercado em expansão.
Há uma espécie de "sobra" de dinheiro na acumulação financeira.
Os super-ricos são cada vez mais
numerosos. Uma ínfima parte que
dediquem à arte, com ou sem apoio
dos governantes, com vistas a coleções privadas ou públicas, já é o
bastante para fazer girar esse reluzente mercado.
Não são apenas obras de "clássicos" que atraem a atenção dos colecionadores/investidores. A produção moderna e a mais recente
também. E mesmo aqui em nossa
festiva e melancólica periferia tropical, que produz arte contemporânea de gente grande, o mercado
vai cada vez mais se estruturando
-e saindo do limbo.
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