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CONTARDO CALLIGARIS
Sobre o atirador de Virginia Tech
A procura de explicação revela mais sobre nós do que sobre o objeto de nossas investigações
1) SOU uma pessoa razoavelmente sociável. Dispenso e
retribuo sorrisos e banalidades ("Oi", "Tudo bem?") nos elevadores, nos vestíbulos e mesmo na
rua.
Mas há pessoas para quem o exercício dessa socialidade "básica" é
forçado ou intoleravelmente hipócrita. Para um amigo monge beneditino, o uso da linguagem é permitido
só quando a gente tem algo a dizer
que seja crucial para o destino da alma: o silêncio lhe parece quase sempre mais próximo da verdade do que
a falação (sobre a virtude do silêncio,
aliás, acaba de sair "Silêncio e Contemplação - Uma Introdução a Plotino", de Gabriela Bal).
Pois bem, desde o massacre de
Virginia Tech, leio e escuto que o atirador era taciturno e silencioso, não
devolvia saudações nem olhares.
Conclui-se que ele era uma pessoa
"anti-social".
É normal: quando acontece um
horror, dormimos melhor com uma
explicação. Mas, freqüentemente, a
procura das explicações revela mais
sobre nós mesmos do que sobre o
objeto de nossa investigação. No caso, a explicação pelo caráter taciturno do atirador revela sobretudo que
somos tão preocupados com nossa
agressividade que preferimos afogá-la num rio de palavras vazias. Quem
se cala nos perturba porque seu silêncio evoca tudo o que nós mesmos
tentamos esconder atrás de nossa
barulhenta "cordialidade" (inquietudes, medos, raivas, lubricidade
etc.).
Ora, quando a "sociabilidade" é
um jogo obrigatório, quem não joga
está fora, é um excluído. E, numa sociedade que valoriza a inclusão, econômica ou convivial, a exclusão é
sempre explosiva.
2) Alguns comentadores entenderam que o atirador produziu e tornou público um vídeo para tornar-se
uma "celebrity" após a morte. Por isso, segundo eles, as imagens não deveriam ser mostradas pela televisão.
De novo, a "explicação" é uma projeção de nossa própria paixão pelos
"cinco minutos de fama": atribuímos ao atirador uma vontade da
qual nos envergonhamos.
De fato, ele me pareceu sobretudo
preocupado em declarar que se orgulhava de seu ato. Mais um desaforo? Não sei: nas culturas orientais
(veja-se o clássico de Ruth Benedict,
"O Crisântemo e a Espada", Perspectiva), a vergonha é o grande regulador social; e o melhor remédio
contra a vergonha é o orgulho.
3) O atirador evocou o "exemplo"
de Cristo. Loucura? Em termos.
Max Weber (em "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo",
Companhia das Letras ou Martin
Claret) mostrou que o sucesso econômico do protestantismo (nos
EUA, por exemplo) se deveu à idéia
de que os predestinados à salvação
eterna seriam também os eleitos na
vida terrena: o sucesso é bom e demonstra que Deus nos ama.
Essa idéia estimula o crescimento,
mas gera inevitavelmente, no "perdedor", o anseio de uma revanche já
neste mundo, uma revanche para
provar que a graça divina não o esqueceu.
4) Em 1996, eu ensinava a patologia das migrações na Universidade
da Califórnia em Berkeley. A chegada de um estudante coreano ou chinês no departamento de antropologia era uma raridade. Em geral, os
imigrantes orientais não falam nem
aprendem inglês, o que torna problemática, para seus filhos, a escolha
de uma disciplina humanística; as
carreiras científicas são o caminho
mais rápido de integração.
O atirador de Virginia Tech (cujos
pais não falam inglês) estava estudando literatura inglesa. O conflito
entre sua origem e sua vontade de se
integrar devia ser dramaticamente
agudo.
5) A primeira reação, nos EUA, foi
o protesto contra a facilidade de adquirir armas. Mas, para o lobby das
armas, o evento prova o contrário: se
cada aluno pudesse carregar sua arma (com a naturalidade com a qual a
gente carrega um celular), um atirador mataria só um ou dois, antes de
cair numa chuva de balas.
6) Mais importante: naquela manhã fria, um professor, Liviu Librescu, 76 anos, judeu de origem romena, sobrevivente do genocídio, não
hesitou em dar a vida para impedir
que o assassino entrasse na sala de
aula. Com isso, ele permitiu que vários estudantes se salvassem. Somos
fascinados pelas "razões" que levam
alguém a cometer um horror. Por
exemplo, há estantes de livros tentando entender por que alemães comuns se tornaram, durante o nazismo, assassinos. Seríamos justos com
nossa espécie se, às vezes, colocássemos a pergunta inversa: como é possível que, no horror, quase sempre
haja alguém que faz a coisa certa?
ccalligari@uol.com.br
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