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Crítica/"Duas Vidas"
Escolhas políticas de Gertrude Stein não ofuscam sua obra
Biografia revela que artista apoiou Franco e fez concessões aos alemães na França
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Até que ponto o conhecimento da biografia de
um artista deve interferir na interpretação de sua
obra? Até o ponto em que os fatos biográficos ajudam a compreender a sua linguagem. Como relativizar a militância anti-semita de Céline, o fascismo de
Ezra Pound e separá-los de seu
trabalho?
É um problema difícil para o
leitor e para o crítico, mas não
há como negar que a interpretação da obra em função do conhecimento das opções políticas, sexuais ou religiosas de um
autor é um problema pessoal,
não estético. Posso optar por
não ler determinado escritor
porque discordo de suas escolhas, mas não posso avaliar seu
trabalho em função disso.
Em "Duas Vidas", Janet Malcolm faz uma pesquisa de fôlego sobre alguns bastidores nada abonadores da relação entre
Gertrude Stein e Alice B. Toklas e menos ainda das relações
que Gertrude manteve, durante a Segunda Guerra Mundial,
para conseguir permanecer no
interior da França em relativa
tranqüilidade. Como duas lésbicas judias mantiveram uma
bela casa no interior, durante
vários anos, sem serem incomodadas pelos alemães ou pelos franceses?
O foco principal da pesquisa
é a amizade que Gertrude estabeleceu com um grande colaboracionista francês, Bernard
Fay, escritor, professor e também homossexual, que, segundo consta, teria protegido o casal Gertrude e Alice durante a
guerra. Além disso, o livro também conta sobre o apoio de
Gertrude a Franco, durante a
Guerra Civil Espanhola, contrariando as tendências de praticamente todos os seus amigos
durante a época, inclusive o
mais conhecido deles, Picasso.
Concessão ao público
Seu livro mais vendido, "A
Autobiografia de Alice B. Toklas", escrito por Gertrude como se a narradora fosse Alice,
falando de sua amante genial,
foi, segundo a pesquisadora,
uma concessão da autora ao
grande público, uma vez que
sua linguagem feita de colagens
e justaposições era incompreensível demais.
Do apoio a Franco e da amizade com um aliado dos nazistas, Janet Malcolm vai à miséria em que morreu Alice, já nos
anos 60, privada da herança das
centenas de quadros de Gertrude, que, no final, ficaram mesmo dentro do círculo nada revolucionário de sua família e
foram confiscados de forma patética pela segunda mulher de
seu sobrinho.
Escolhas políticas
Mas, apesar da acuidade da
pesquisa, resta outra pergunta:
se é difícil decidir sobre a importância das escolhas políticas
dos grandes autores, qual é a
utilidade de se realizar um estudo pormenorizado sobre essas escolhas? Para revelar ao
grande público a "verdade" que
se esconde por trás das obras?
Para obter sucesso em nome de
sua popularidade?
Gertrude Stein já era polêmica o suficiente como autora, na
sua linguagem autônoma e circular, para que seja necessário
conhecer os bastidores de suas
escolhas políticas, a não ser como curiosidade. Sua vida pessoal, carregada de detalhes saborosos (amizade com Picasso
e Hemingway, homossexualismo, judaísmo mal assumido)
não pode ocupar o lugar da tarefa muito mais desafiadora de
se compreender sua obra, que
fica sempre muito além dessas
curiosidades.
Afinal, para quem lê "Uma
Temporada no Inferno", de
Rimbaud, que diferença faz saber que ele foi traficante de armas na África? E, no futuro, como se poderá esquecer a frase
"uma rosa é uma rosa é uma rosa", em que Gertrude desbanalizou essa flor pela primeira vez
em cem anos?
DUAS VIDAS - GERTRUDE E ALICE
Autora: Janet Malcolm
Tradução: Patricia de Queiroz Carvalho Zimbres
Editora: Paz e Terra
Quanto: R$ 47 (216 págs.)
Avaliação: regular
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