São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2000


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CARLOS HEITOR CONY

Contra o turismo cultural com breve exceção

Num ano qualquer do passado, programei uma temporada em Ouro Preto com minhas filhas, que eram crianças, aí por volta dos 10 anos. Precisava acabar um livro, e nada melhor do que o cenário barroco de uma velha cidade. Estava em fase de preparativos, quando a filha mais velha veio com a novidade.
Não queria ir para Ouro Preto. Preferia viajar com a prima, que tinha a mesma idade dela e que iria fazer "o roteiro das cidades históricas de Minas Gerais". A frase mereceria um ponto de exclamação, pois ela me comunicou o passeio com ênfase: "Cidades históricas de Minas Gerais!".
Eu poderia argumentar que Ouro Preto era também uma cidade histórica. Perto de Sabará e Congonhas, vizinha de Mariana. Sem prejudicar o meu trabalho, poderia levá-la às mesmas cidades. Ela continuou preferindo o roteiro da prima, que era mais solene e fecundo: cidades históricas de Minas Gerais!
Sempre embirrei com o turismo cultural. Quando estava por volta dos 40 anos, decidi fazer um roteiro espiritual, que é coisa diferente. Fui a Roma (que já estava careca de conhecer), a Jerusalém e a Atenas. Três cidades que fundaram o Ocidente, que, de certa maneira, formaram aquilo que sou, penso ou deixo de pensar.
Não fui como turista, mas como peregrino. Evitei os lugares mais óbvios, descobri uma tasca em Atenas que me emocionou tanto ou mais do que a Acrópole inteira, que estava cheia de turistas e repleto de barraquinhas de cachorro-quente.
Outro dia, relendo Eça de Queiroz, me espantei com a viagem que ele fez ao Egito -e que foi o ponto de partida para sua carreira literária. Chegando a Alexandria, saiu-se com essa: "O navio flutuava nas mesmas águas onde outrora fundearam as galeras de púrpura que voltavam do Actium".
Como no caso das cidades históricas de Minas Gerais, a frase exigia um ponto de exclamação: "...que voltavam do Actium!". E Eça continuava, deslumbrado: "Alexandria, onde estavam seus 4.000 banhos, seus 4.000 circos, seus 4.000 jardins!".
Muitos anos após Eça, fui dar com os costados nas mesmas águas onde flutuaram as galeras de púrpura que vinham do Actium. O navio faria uma escala em Alexandria, ônibus especiais transportariam os passageiros até o Cairo -cidade que eu já conhecia, por ocasião de uma conferência que selaria o acordo de paz entre o Egito e Israel.
Nada tinha a fazer no Cairo. Já estava farto de visitar múmias, túmulos de faraós e califas. Por mais que me explicassem, minha curiosidade não se sentia atraída por Síris 1º, da quinta dinastia, nem por Ramsés 3º, da 16ª dinastia.
Birra específica sempre cultivei contra banheiras etruscas, que enchem grande parte dos museus gigantescos, como o Louvre e o Vaticano. Daí que, nos últimos anos, quando me falam em turismo cultural ou qualquer coisa parecida, como aquele militar sul-americano da anedota, tenho vontade de puxar a arma que nunca possuí.
Volta e meia dou um azar involuntário. Durante a Copa do Mundo, na França, fui a Notre Dame levar um amigo para conhecer a catedral do corcunda. Parei perto de uma pilastra para mostrar a rosácea que nem sei por que havia entrado num romance que publiquei por aí.
Estava mostrando o belíssimo vitral quando o meu amigo apontou o chão e disse: "Veja, você está em cima do lugar onde Paul Claudel ouviu o "Magnificat" e se converteu". Realmente, olhei para baixo e lá estava a placa, comunicando aos passantes que ali o poeta ateu ouvira o belo hino em gregoriano e abraçara a fé para sempre.
Já estivera no mesmo lugar diversas vezes, nunca olhara o chão nem me lembrava de que o poeta e diplomata ali recebera o raio de Damasco que mudaria sua vida.
O mesmo já me acontecera anos antes, quando tomava um comprido e complicado sorvete olhando o Palazzo Vecchio, de Florença, ao cair de uma tarde bem toscana. Lambia a gostosa casquinha quando a moça que me acompanhava mostrou o chão e me avisou: "Você está bem em cima do lugar onde enforcaram Savonarola".
Dei um pulo. Que diabo, a praça é enorme, tanto lugar para pisar e fui ficar justamente em cima daquela placa, o local onde o terrível frade fora "impiccato".
Por essas e outras, fui tomando pavor dos sítios históricos. Mesmo assim, como convêm às regras, tive uma exceção. Foi na Grécia, as belas colunas de mármore que restaram do templo dedicado a Posêidon, deus dos mares. Fica bem no extremo de uma ponta que avança para o Egeu, era a última referência da terra para os marinheiros que se aventuravam no desconhecido.
Estava olhando aquele mar azul, emoldurado pelo templo branco, nacarado, quando vi numa coluna, escrito a canivete, o nome de Byron. Exatamente isso: apesar de civilizado, o poeta agredira aquele mármore e ali deixara o nome dele.
Olhei em torno. Não tinha nenhum guarda. Com a chave do carro, arranhei meu nome, bem embaixo do dele. Foi um atentado, reconheço. Mas até hoje não me arrependo disso.


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