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CARLOS HEITOR CONY
Contra o turismo cultural com breve exceção
Num ano qualquer do
passado, programei uma
temporada em Ouro Preto com
minhas filhas, que eram crianças,
aí por volta dos 10 anos. Precisava
acabar um livro, e nada melhor
do que o cenário barroco de uma
velha cidade. Estava em fase de
preparativos, quando a filha mais
velha veio com a novidade.
Não queria ir para Ouro Preto.
Preferia viajar com a prima, que
tinha a mesma idade dela e que
iria fazer "o roteiro das cidades
históricas de Minas Gerais". A
frase mereceria um ponto de exclamação, pois ela me comunicou
o passeio com ênfase: "Cidades
históricas de Minas Gerais!".
Eu poderia argumentar que
Ouro Preto era também uma cidade histórica. Perto de Sabará e
Congonhas, vizinha de Mariana.
Sem prejudicar o meu trabalho,
poderia levá-la às mesmas cidades. Ela continuou preferindo o
roteiro da prima, que era mais solene e fecundo: cidades históricas
de Minas Gerais!
Sempre embirrei com o turismo
cultural. Quando estava por volta
dos 40 anos, decidi fazer um roteiro espiritual, que é coisa diferente.
Fui a Roma (que já estava careca
de conhecer), a Jerusalém e a Atenas. Três cidades que fundaram o
Ocidente, que, de certa maneira,
formaram aquilo que sou, penso
ou deixo de pensar.
Não fui como turista, mas como
peregrino. Evitei os lugares mais
óbvios, descobri uma tasca em
Atenas que me emocionou tanto
ou mais do que a Acrópole inteira, que estava cheia de turistas e
repleto de barraquinhas de cachorro-quente.
Outro dia, relendo Eça de Queiroz, me espantei com a viagem
que ele fez ao Egito -e que foi o
ponto de partida para sua carreira literária. Chegando a Alexandria, saiu-se com essa: "O navio
flutuava nas mesmas águas onde
outrora fundearam as galeras de
púrpura que voltavam do Actium".
Como no caso das cidades históricas de Minas Gerais, a frase exigia um ponto de exclamação:
"...que voltavam do Actium!". E
Eça continuava, deslumbrado:
"Alexandria, onde estavam seus
4.000 banhos, seus 4.000 circos,
seus 4.000 jardins!".
Muitos anos após Eça, fui dar
com os costados nas mesmas
águas onde flutuaram as galeras
de púrpura que vinham do Actium. O navio faria uma escala
em Alexandria, ônibus especiais
transportariam os passageiros até
o Cairo -cidade que eu já conhecia, por ocasião de uma conferência que selaria o acordo de paz
entre o Egito e Israel.
Nada tinha a fazer no Cairo. Já
estava farto de visitar múmias,
túmulos de faraós e califas. Por
mais que me explicassem, minha
curiosidade não se sentia atraída
por Síris 1º, da quinta dinastia,
nem por Ramsés 3º, da 16ª dinastia.
Birra específica sempre cultivei
contra banheiras etruscas, que
enchem grande parte dos museus
gigantescos, como o Louvre e o
Vaticano. Daí que, nos últimos
anos, quando me falam em turismo cultural ou qualquer coisa parecida, como aquele militar sul-americano da anedota, tenho
vontade de puxar a arma que
nunca possuí.
Volta e meia dou um azar involuntário. Durante a Copa do
Mundo, na França, fui a Notre
Dame levar um amigo para conhecer a catedral do corcunda.
Parei perto de uma pilastra para
mostrar a rosácea que nem sei por
que havia entrado num romance
que publiquei por aí.
Estava mostrando o belíssimo
vitral quando o meu amigo apontou o chão e disse: "Veja, você está
em cima do lugar onde Paul
Claudel ouviu o "Magnificat" e se
converteu". Realmente, olhei para baixo e lá estava a placa, comunicando aos passantes que ali
o poeta ateu ouvira o belo hino
em gregoriano e abraçara a fé para sempre.
Já estivera no mesmo lugar diversas vezes, nunca olhara o chão
nem me lembrava de que o poeta
e diplomata ali recebera o raio de
Damasco que mudaria sua vida.
O mesmo já me acontecera anos
antes, quando tomava um comprido e complicado sorvete olhando o Palazzo Vecchio, de Florença, ao cair de uma tarde bem toscana. Lambia a gostosa casquinha quando a moça que me
acompanhava mostrou o chão e
me avisou: "Você está bem em cima do lugar onde enforcaram Savonarola".
Dei um pulo. Que diabo, a praça é enorme, tanto lugar para pisar e fui ficar justamente em cima
daquela placa, o local onde o terrível frade fora "impiccato".
Por essas e outras, fui tomando
pavor dos sítios históricos. Mesmo
assim, como convêm às regras, tive uma exceção. Foi na Grécia, as
belas colunas de mármore que
restaram do templo dedicado a
Posêidon, deus dos mares. Fica
bem no extremo de uma ponta
que avança para o Egeu, era a última referência da terra para os
marinheiros que se aventuravam
no desconhecido.
Estava olhando aquele mar
azul, emoldurado pelo templo
branco, nacarado, quando vi numa coluna, escrito a canivete, o
nome de Byron. Exatamente isso:
apesar de civilizado, o poeta agredira aquele mármore e ali deixara o nome dele.
Olhei em torno. Não tinha nenhum guarda. Com a chave do
carro, arranhei meu nome, bem
embaixo do dele. Foi um atentado, reconheço. Mas até hoje não
me arrependo disso.
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