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Biografia do poeta revela-o paradoxal -por um lado, absolutamente anárquico; por outro, espartano
Leminski, entre o capricho e o relaxo
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
- Mano, o Pedro pediu a conta. Chamou o garçom.
O relógio acabava de marcar 8h
quando, no dia 17 de dezembro de
1986, o poeta curitibano Paulo Leminski acordou um amigo para
lhe dar a notícia brutal pelo telefone: Pedro pedira a conta. Resolvera se matar. Enforcara-se com
uma corda de náilon branca, às
vésperas de completar 40 anos.
Era o único irmão de Leminski.
Também poeta, morreu num
quarto de pensão, sem emprego,
alcoólatra, longe da mulher e da
filha. Paulo, o primogênito, não o
via desde 1980. Estavam brigados.
Como um golpe repentino e
certeiro de judô -o esporte que
Leminski tanto admirava-, o
suicídio o devastou. Sentia-se culpado pelo destino sombrio do irmão caçula. Ainda assim, no momento de dar a notícia, não abdicou da irreverência linguística
que costumava praticar em poemas, romances, letras de música,
ensaios críticos, slogans publicitários e textos jornalísticos. Nem
diante da tragédia cedeu à solenidade das palavras.
O relato sobre a morte de Pedro
abre o livro "Paulo Leminski - O
Bandido que Sabia Latim", assinado por Toninho Vaz, o "mano"
(e jornalista) que recebeu o telefonema de 1986. Com 377 páginas, a
biografia deverá ser lançada em
junho, nos dias 18 (Rio), 26 (Curitiba) e 27 (São Paulo).
Três anos após o suicídio, o poeta novamente apelaria à desfaçatez verbal para enfrentar um drama -agora, o dele próprio.
Em 1989, se achava numa ambulância, rumo à UTI, corroído
pelo mesmo mal que destruíra
Pedro, o alcoolismo. Agonizante,
vomitava sangue, mas preservava
a consciência. Alguém quis consolá-lo: "Oi, Paulo, fique tranquilo. Depois a gente se fala...". E Leminski: "Depois coisa nenhuma.
Pode dar boa-noite pro gaiteiro!".
O gaiteiro pediu a conta logo em
seguida, vítima de cirrose. Somava frenéticos 44 anos. "leite, leitura/ letras, literatura/ tudo o que
passa/ tudo o que dura/ tudo o
que duramente passa/ tudo o que
passageiramente dura/ tudo, tudo, tudo/ não passa de caricatura/
de você, minha amargura/ de ver
que viver não tem cura."
Para escrever "O Bandido que
Sabia Latim", o autor fez 81 entrevistas e consumiu 12 meses em
pesquisas. Já no prefácio, alerta: é
fã do biografado e o conhecia pessoalmente desde 1968.
Trata-se, então, de um inventário afetivo, que recorre também às
reminiscências de Vaz e que nasceu sob o estímulo da poeta Alice
Ruiz, mulher de Leminski por
duas décadas, com quem teve três
filhos (o primeiro, Miguel, morreu garoto, de câncer linfático).
Cronologicamente linear, o livro se destaca pela reconstituição
precisa do ambiente hippie, contracultural, iconoclasta que norteava o artista. De quebra, traz
histórias prosaicas do "ministro-sem-pasta da marginália" -a
maioria, saborosíssimas.
Mais: revela de que maneira
surgiram os principais trabalhos
do poeta e resgata alguns inéditos,
incluindo uma crônica escolar, de
1962, sobre o inverno curitibano
(ali, ainda não havia sinais do experimentalismo nem do estilo
conciso, mordaz e pop que consagrariam Leminski).
O caráter elogioso, no entanto,
não impede a biografia de expor
as fraquezas de seu protagonista.
Em inúmeros trechos, a "besta
dos pinheirais", o "louco da aldeia" mostra-se digno das alcunhas que se atribuía.
Egocêntrico, intempestivo,
omisso em relação à família, o
poeta de origem polonesa, negra e
indígena manifestou cedo a compulsão para o álcool, cigarro e outros tipos de drogas -vícios que,
até o matarem, lhe custaram empregos, vexames públicos e o casamento. "tudo em mim/ anda a
mil/ tudo assim/ tudo por um fio."
Vaz sugere, ainda, que Leminski
gerou um quarto filho, fruto de
uma paixão adolescente, anterior
à união com Alice. O rapaz, vocalista de uma banda carioca, não
carrega o sobrenome do escritor.
Sua mãe nega a paternidade, e o
próprio Leminski nunca a assumiu. O biógrafo, porém, não apenas lança a suspeita, como a alimenta. Eis, aqui, a grande falha do
livro: insinuar algo de tamanha
gravidade sem apresentar argumentos conclusivos.
Em compensação, "O Bandido..." oferece elementos de sobra
para o leitor inferir que a identidade psíquica e literária do poeta
construiu-se sobre o terreno movediço das contradições. Leminski equilibrava-se entre a absoluta
anarquia e a disciplina espartana
-herdada, talvez, do avô e do pai
militares ou da época em que estudou com monges beneditinos.
Não à toa, batizou de "Caprichos
& Relaxos" sua coletânea mais famosa de poemas.
Por um lado, vestia roupas rasgadas, evitava banhos, não escovava os dentes nem possuía documentos. Por outro, encontrou rigor para elaborar o romance "Catatau" durante oito anos. Aprendeu grego, hebraico e, claro, latim.
Traduziu autores espinhosos, como o irlandês Samuel Beckett e o japonês Yukio Mishima. Dialogou com os concretistas e buscou
adequar a língua portuguesa à sonoridade do rock.
As facetas paradoxais do escritor conseguiram despertar tanto o respeito do meio acadêmico
quanto o de cantores populares,
em especial Caetano Veloso, Moraes Moreira e Gilberto Gil.
Certa vez, aliás, Gil e Leminski
se juntaram numa roda de violão.
Em tom de conselho, o baiano improvisou: "Pare de beber, pare de beber, rapaz". O paranaense rebateu de pronto: "Pare de parar, pare de parar, rapaz". "o pauloleminski/ é um cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau a pedra/ a
fogo a pique/ senão é bem capaz/
o filhadaputa/ de fazer chover/
em nosso piquenique."
Paulo Leminski - O Bandido que Sabia Latim
Autor: Toninho Vaz
Editora: Record, 2001
Quanto: R$ 35 (377 págs.)
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