São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2006

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Show/réplica

Cambalhota coroa a noite dos Mutantes

FÁBIO VICTOR
DE LONDRES

Com ele sentado ao teclado, as pernas dobradas e a coluna esticada formam um perfeito ângulo reto. Arnaldo Baptista veste uma capa preta, com brilhos nas laterais, calça colante da mesma cor e uma camisa laranja de mangas compridas.
Apesar da roupa estrambótica, os gestos contidos e os óculos de aro fino lhe dão uma aparência de senhor comportado. É desse senhor que, segundo a resenha de Ronaldo Evangelista na Ilustrada (ed. de 24/5) foi um objeto "puramente cênico" no show histórico dos Mutantes na última segunda-feira em Londres, que me ocuparei. O crítico, macambúzio por ter visto um Mutantes diferente daquele de 40 anos atrás, escreveu que Arnaldo foi "incapaz de se entregar e receber de volta o que o público quer [queria] dele".
Há dez artistas no palco do Barbican Hall. Lá está Sérgio Dias, tornado líder pelas limitações físicas do irmão, está lá Zélia Duncan, cercada de expectativa por substituir Rita Lee. Também há Dinho, o baterista da formação original. Há vários músicos novos e bons, há muita coisa acontecendo nesse palco, mas, para mim, é difícil desviar a visão dele. O Arnaldo que encabeçou a psicodelia da "maior banda psicodélica de todos os tempos" -definição recente da "Time Out"-, que se esbaldou de LSD na juventude, que tentou o suicídio pulando da janela de uma clínica psiquiátrica, que dormiu um coma profundo, que vegetou por anos e que, quando ninguém esperava, quase aos 60, renasceu num disco solo em 2004.
É o reencontro dos irmãos Dias Baptista no palco após mais de 30 anos. Há uma excitação evidente entre os 1.800 presentes, já esquentados pela abertura da Nação Zumbi.
É nítido que Arnaldo, ainda com seqüelas de tudo, tem dificuldade em tocar o teclado à sua frente. Ele segue como dá.
Sua voz só começa a ser percebida em "Cantor de Mambo". O tom é fraco e alterado, mas melhora em "Dia 36", lindamente interpretada só por Arnaldo, a proposital distorção da voz fazendo-a crescer.
Se Sérgio Dias é, conforme Evangelista, "o showman da noite", com lucidez, voz uniforme e solos de guitarras -uns maravilhosos, outros só maneiristas-, Arnaldo, o louco, ainda é a encarnação dos Mutantes, com suas imperfeições, seu experimentalismo, seu eterno vagar infantil, sua genialidade.
Ainda que ele insista em parecer distante, o show esquenta, sua recuperação avança, o público o idolatra. Zélia não brilha nem compromete, o que já é muito. Arnaldo canta "Ave, Lúcifer". Parece acordar de vez, faz caretas e trejeitos. Finge se estrangular. Depois cobre o rosto com as mãos e ri.
Vem a apoteose, com "Panis et Circensis", na versão em inglês. Os Mutantes pegam a saída errada, por trás do palco, alguém avisa que é pela lateral. No caminho, o "punctum" da noite: exultante, Arnaldo dá uma cambalhota no palco. Os Mutantes vão embora.
Seria impossível ter sido o que foi nos anos 60/70, e uma ingenuidade acreditar que seria. Não há mais contexto, não há mais LSD, não há mais idade, não há mais Rita Lee. Mas foi lindo. E, de tudo que houve ali, o que mais se aproximou daquele Mutantes foi Arnaldo Baptista.


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