São Paulo, quarta-feira, 26 de junho de 2002

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MARCELO COELHO

O tempo e a arte russa

É bom tirar um capote do armário. Não que o inverno tenha chegado com tanta força assim, mas quem quiser visitar a exposição dos 500 anos de arte russa em cartaz na Oca, no parque Ibirapuera, vai ter de aguentar um ar-condicionado terrível.
Vai ver que foi de propósito. Assim como os cartazes da exposição, cujos letreiros trazem os RR e os NN escritos ao contrário, o frio deve ser para dar idéia de que tudo é bem russo mesmo.
Há também anúncios no rádio. Puseram um sujeito vociferando com um sotaque que parece mais alemão do que russo. O homem convoca o ouvinte a ir à Oca, num tom cada vez mais imperativo e rápido, o que supostamente remete ao totalitarismo soviético.
Mas terminam aí os estereótipos da mostra. Nem mesmo aquele outro clichê romântico, o da alma russa, com melancolias e balalaicas, se confirma nessa exposição, que é pura vitalidade, alegria e deslumbramento.
Verdade que há todo um andar dedicado às imagens religiosas, que por uns bons 200 ou 300 anos refazem os mesmos martírios e solenidades dos seus santos e patriarcas. A atmosfera dessas salas é mais sombria. Mas é a própria austeridade desses ícones, sempre rústicos mesmo quando cobertos de ouro e prata, o que lhes dá um parentesco com os objetos da arte popular cotidiana -rocas de fiar, bonecas de madeira, brinquedos, arcas, estampas humorísticas- que vemos em uma ou duas salas do andar de baixo.
Alguns passos adiante, e estamos em Chagall. "Passeio", de 1917, é um quadro grande, claro e arejado. Retrata o próprio pintor ao ar livre, num piquenique, tendo ao fundo uma cidade verde; Chagall está de mãos dadas com sua mulher, Bella. Ela está voando. Ou melhor, está sendo agitada ao vento -"como um estandarte", diz o catálogo da exposição. A tela só não é totalmente eufórica porque se deixa vazar também por uma intensa, quase abstrata, austeridade.
E é esse espírito de agitação, de comemoração e de rigor ao mesmo tempo o que dá o tom da grande maioria das obras de vanguarda dessa época. Uma das coisas interessantes da exposição é ver, além dos nomes mais conhecidos de Malevitch e Rodchenko, a quantidade de outros artistas -homens e mulheres- também às voltas com cubismo, futurismo e suprematismo: Olga Rozánova, Liubov Popova, Nadiejda Udaltsova, Vladimir Liebedev. Para mim, tudo foi uma descoberta.
Com a vantagem de que a mostra não é tão gigantesca nem exaustiva assim. Mas desconfio de que esteja fazendo muita propaganda do evento quando queria justamente falar do seu aspecto mais polêmico.
Pensei que, com o fim do regime soviético, tivessem queimado todos os quadros e painéis dos tempos do realismo socialista. Aquelas pinturas ultrafotográficas dos anos 30 e 40, que mostram Stálin como "pai dos povos", iluminado e sorridente... será que alguém ainda tem estômago para ver esse tipo de coisa?
Um andar inteiro da exposição está reservado ao realismo socialista e aos cartazes de propaganda. Claro que, com o passar do tempo, aqueles painéis que mostram esportistas e personalidades exemplares do regime soviético deixam de ter conotações políticas mais sinistras (eu não diria o mesmo da arte nazista, contudo).
Há outro efeito dessa passagem do tempo. Vejo um cartaz com o rosto de Stálin ou um quadro de desfile cívico em Leningrado e aquilo me evoca menos o totalitarismo russo do que os anúncios de sabonete Eucalol, as capas de "Seleções do Reader's Digest", um retrato de Getúlio Vargas.
A mesma linguagem ultra-realista, idealizada, oleográfica, glaceada está presente na arte oficial soviética e na arte oficial brasileira ou norte-americana daquele tempo. Há coisa de uns 30 anos, era totalmente desinformado o sujeito que gostasse de Norman Rockwell, com suas ilustrações fotográficas do "american way of life". Hoje, Rockwell é objeto de retrospectivas consagradoras e artigos que o levam a sério. A sério demais, na minha opinião.
Há uma lei de valorização cultural por trás disso: Rockwell e os realistas socialistas entraram na moda simplesmente pelo fato de que estão fora de moda. Atributos sentimentais, perversidades de gosto, fastio e esgotamento da vanguarda sobrepõem novas camadas de interesse àquilo que foi execrado há tempos.
Mesmo entre os realistas da exposição, em todo o caso, há diferenças notáveis de espírito e de qualidade. Ao lado de quadros puramente propagandísticos, pintores figurativos como Alexander Samokhválov ("Setor de Tecelagem", "Operária do Metrô") ou Deineka ("Corrida") apresentam uma linguagem sóbria, com direitos de cidadania garantidos, por assim dizer, na arte do século 20.
Mas é como se esses artistas, querendo representar o "povo", se afastassem da arte popular, da arte folclórica, mais áspera e festiva; e esta, por sua vez, é que se aproxima da vanguarda, tão... impopular na sua época.
Talvez esse descompasso entre o popular, o impopular e a vanguarda seja o verdadeiro tema da exposição; e é um descompasso que serve como resumo não só da arte mas da política do século passado também.



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