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NELSON ASCHER
Como você pode pensar assim?
Há poucas coisas mais reconfortantes do que contar com uma visão fechada de mundo
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QUEM QUER que tenha procurado entender certas questões, particularmente as que
envolvem o panorama internacional, não apenas sem o auxílio das categorias corriqueiras mas também
segundo suas próprias luzes, já terá
ouvido um interlocutor, entre atônito, assustado e enfurecido, perguntar-lhe: "Como é que você pode pensar assim?".
Inevitavelmente, para o bem de
todos e felicidade geral dos convivas
(tais incidentes costumam ocorrer
em jantares), conclui-se logo que, se
uma pessoa acha, por exemplo, que
os perigos do aquecimento global
não foram ainda demonstrados e
que as medidas propostas pelo Protocolo de Kyoto não serviriam para
muito, que a Guerra do Iraque não
se assemelha à do Vietnã nem terá
desfecho semelhante, que o ângulo
territorial da crise do Oriente Médio
é secundário, encobrindo manipulações demagógicas e motivações etno-religiosas, que desigualdades de
renda pouco ou nada contribuem
para elucidar as causas da criminalidade e do terrorismo, que, ao contrário do que se supõe, punição, retaliações e guerra são, sim, capazes
de resolver diversos problemas, enfim, se alguém ensaia tais pontos de
vista, está obviamente (a não ser que
alegue insanidade) agindo de má-fé.
O curioso, porém, é que, antes de
se chegar ao veredicto acima e à conseqüente sentença, não raro, a surpresa se revela intensa e sincera o
bastante até para tolher os primeiros reflexos agressivos, pois não faltam, nem sequer nas rodas mais civilizadas, interlocutores que, enquanto não aplicam ao discordante,
dissidente ou herético o tratamento
merecido, entremostram, no seu
pasmo, que nem esperavam nem
haviam sido espiritualmente preparados para encontrar pela frente
opiniões, idéias e informações diferentes das suas ou, pior ainda, maneiras distintas de pensar.
Como, durante um devaneio ou
outro, eu me sinto tão humano
quanto vocês, terráqueos, tampouco
resisto, nessas ocasiões, ao acalanto
de uma nostalgia que, de quando em
quando, me invade, nostalgia menos
da inocência perdida do que das certezas abandonadas. Há poucas coisas mais reconfortantes do que contar com uma visão fechada e completa de mundo.
Melhor do que Lexotan, Valium e
similares, ela dissipa a angústia dos
usuários, convertendo o estranho
no conhecido, traduzindo meticulosa e certeiramente acontecimentos
inesperados em termos que, além de
domesticá-los, asseguram àqueles
que seus postulados continuam inabalados e inabaláveis. De resto, o
temperamento nacional inclina
nossos compatriotas a adotarem
concepções que ou negam a existência de conflitos passionais ou, se acaso a admitem, preferem interpretá-los como falhas facilmente corrigíveis de comunicação.
Preço
Que a tranqüilidade mental fique,
portanto, de antemão assegurada
nem por isso lhe reduz o preço.
Qual é este? Talvez o mais alto consista em fazer parecer desinteressantes e insossos precisamente os
assuntos cuja natureza, atualidade
e complexidade tornariam intrigantes e sempre apetitosos.
Assim é o prisma programadamente tedioso e inapetente através
do qual se narra a presente conflagração na Mesopotâmia, que, ao
descartá-la como simples aventura
imperial do grande vilão capitalista
sequioso de petróleo, inibe a formulação de outras tantas indagações pertinentes. Entre elas: como
se explica o comportamento de
Saddam Hussein? Ele acreditava
que o Iraque não seria invadido ou,
caso o fosse, que seu Exército repeliria as tropas da coalizão? De onde
vinham essas esperanças absurdas? Houve aliados ou simpatizantes seus que tenham lhe dado algum tipo de garantia?
E quanto ao Afeganistão, o que
levou o regime dos talebans a se
imaginar protegido, invulnerável?
Seu verdadeiro fiador era o Paquistão, país que, após breves negociações, entregou aos Estados Unidos,
numa bandeja, a cabeça do satélite
vizinho: o que é que o presidente
paquistanês Pervez Musharraf ganhou ou, mais provavelmente, evitou perder? E por que se passaram
quase cinco anos sem novos mega-atentados em solo americano: os jihadistas não tentaram perpetrá-los ou não o conseguiram? Esse fato em si não apontaria para um sucesso parcial da estratégia militar
da administração republicana? Como se vê, enigmas e mistérios não
faltam, e os que se eximem de investigá-los deveriam, no mínimo,
se abster de julgar maçante ou frustrante o mundo contemporâneo.
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