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CRÍTICA ROMANCE
Talento ficcional supera a pregação religiosa de Tolstói
"Ressurreição" reflete embate do autor entre a arte e o projeto evangélico
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"A verdadeira conversão
consiste em aniquilar-se",
escreve Pascal nos "Pensamentos" -essa obra-prima
da filosofia moral, recusa do
humano e da mundanidade,
cuja mais perfeita tradução
ficcional é a obra de Liev
Tolstói (1828-1910).
Não o autor do drama de
adultério "Anna Kariênina"
ou do épico "Guerra e Paz",
mas o escritor de histórias de
contrição e renúncia como
"Padre Sérgio" ou "Ressurreição" -últimos de seus
grandes romances.
O escritor russo evolui no
sentido de uma negação da
vida em sociedade que inclui
a denúncia da propriedade
privada e culmina na dupla
rejeição da procriação e da
arte ("A Sonata a Kreutzer")
-ou seja, das maneiras de
perpetuar nossa existência
inútil, descrita em "A Morte
de Ivan Ilitch".
"Ressurreição" é um capítulo importante desse enredo
paradoxal, no qual o aristocrático autor de clássicos da
literatura universal se converte a uma forma primitiva
de cristianismo (sendo excomungado pela Igreja Ortodoxa russa) e, aos 82 anos, foge
de sua propriedade rural, em
Iásnaia Poliana, para morrer
à beira de uma linha de trem.
O paradoxo, no caso, se refere a essa obra que nasce do
coração da recusa.
Triunfo da literatura, o
profeta não consegue abdicar da palavra, quer usá-la
para expandir sua pregação e
produz, talvez a contragosto,
mais obras-primas.
CRISE ESPIRITUAL
A começar pelo título,
"Ressurreição" integra esse
projeto evangélico.
Numa noite de Páscoa, em
que se celebra a ressurreição
de Cristo, o nobre Nekhliúdov seduz a empregada Ekatierina Máslova (a jovem Katiucha, por quem tivera uma
paixão de juventude).
Grávida, é expulsa da família, torna-se prostituta e
termina sendo acusada de
envenenar um cliente.
Nekhliúdov é convocado
para o júri de seu julgamento, reconhece a mulher que
ofendera anos antes e sofre
uma crise espiritual.
Começa uma outra ressurreição: a dessa criatura que,
como seu criador, quer expiar os pecados, ambiciona
renunciar a suas terras em favor dos camponeses e segue
Katiucha quando esta é condenada a trabalhos forçados
na Sibéria.
Nas últimas páginas, a leitura do "Evangelho de São
Mateus" anuncia a vida nova
de Nekhliúdov. Mas o desfecho pacificador faz parte de
um ilusionismo moral soterrado por verdades da ficção.
"Ressurreição" pinta um
quadro repugnante da sociedade russa, do sistema carcerário czarista, do aparelho de
Estado: jurados que desejam
absolver a ré inocente, mas
que, exaustos, acabam errando grotescamente o veredicto; juízes que identificam
o equívoco, mas confirmam a
sentença para não reiterarem
uma imagem de leniência perante a opinião pública.
Katiucha aceita, sem retribuir ou perdoar, os favores
do ofensor. Nekhliúdov percebe a vaidade por trás de
seus atos redentores.
A conversão final é um salto fora do tempo histórico,
para o qual não há ressurreição -só aniquilação.
RESSURREIÇÃO
AUTOR Liev Tolstói
TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 79 (432 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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