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São Paulo, sábado, 26 de julho de 2003

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RODAPÉ

A alegria difícil da poesia de Marcos Siscar

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

As editoras 7 Letras e Cosac & Naify estão lançando dois livros de poesia: "Metade da Arte", de Marcos Siscar, e "Caveira 41", de Age de Carvalho. Ambos fazem parte da coleção Ás de Colete (cujo nome é uma homenagem ao livro homônimo de Zuca Saldanha). Age de Carvalho é um autor com uma trajetória já conhecida e reconhecida. Vou me limitar, portanto, ao livro de Siscar, cuja poesia teve um impacto discreto, porém definitivo, na literatura brasileira recente.
Nascido em Borborema (SP) em 64, Siscar passou alguns anos em Paris, onde escreveu tese sobre o filósofo Jacques Derrida. Tal experiência francesa talvez explique tanto a demora para que sua produção viesse a público quanto a dicção desviante que representa no contexto de nossa poesia.
Siscar estreou em 1999 com o livro "Não se Diz". Depois, em 2001, publicou um pequeno volume com apenas 12 poemas intitulado "Tome Seu Café e Saia", pelo selo Moby Dick. Na edição da Ás de Colete, estes livros foram reunidos a dois outros: "A Terra Inculta" (cronologicamente seu primeiro livro, que permanecera inédito) e "Metade da Arte", sua produção mais recente, que dá nome a esse conjunto de quatro livros em um.
O leitor que folhear ao acaso os poemas de Siscar notará de imediato uma uniformidade incomum: em geral, são blocos de versos longos, como se houvesse ali uma concentração de sentido, um enquadramento e uma asfixia. E essa informação visual se traduz numa sintaxe igualmente incomum, ao mesmo tempo narrativa e hermética.
Como escreve o poeta francês Michel Deguy no prefácio a "Não se Diz", sua "frase despontuada obriga o leitor a retomá-la, a relê-la; a começar a aprender seu lancinamento". A observação é precisa. De nada adiantaria esse estranhamento formal sem o lancinamento que o exige -e toda a sequência inicial de "Não se Diz", intitulada "A Palavra e a Dor", é uma meditação sobre a representação poética de um sofrimento que não se pode expressar (porque é banal demais para ser comunicado ou porque é incomensurável, estando além do limite do nomeável): "Não se diz reter o vislumbre da carne pela camisa mutilada/ pele retraída ao toque cerimônia do intelecto que se avalia/ guardar a coisa pelo avesso posse de coisa ida".
A expressão "não se diz", repetida em sucessivos poemas, enuncia esse drama da representação ("há coisas de sobra que não se dizem/ há coisas que sobram no que se diz/ nossa miséria é uma alegria de palavras?") que está no coração da obra de Siscar.
Já em seu primeiro livro, "A Terra Inculta" (que na edição da Ás de Colete corresponde à última parte do livro), tanto a dimensão da memória (na seção "Noites de Província") quanto a experiência da viagem (na seção "Mediterrâneo") se desdobravam numa tentativa de materializar poeticamente esse duplo exílio (no tempo e no espaço).
Os imigrantes "deslumbrados de futuro" e a "sintaxe da terra inculta" que crepita no meio-dia mediterrâneo mostram como a obra de Siscar sempre foi atravessada pela busca de uma pureza poética que nasce da matéria mais rude e elementar, ecoando expressamente o hermetismo solar de Montale ("quisera ter-me sentido tosco e essencial").
No caso do livro que dá título ao volume, porém, o deslumbramento cede lugar à pura negatividade, reiterada na tentativa de atingir a "alegria difícil" da poesia contra o pano de fundo de uma realidade em que "tudo é comum": "Não não devo ser o único a apertar o passo/ na direção de coisas sem minúcia de coisas/ que não me olham de coisas sem rumo não/ não devo omitir que são nulas não devo".
Finalmente, uma nota negativa: apesar do inventivo projeto gráfico (que lembra uma caderneta de anotações), o livro não traz nenhuma informação sobre sua organização interna, impedindo que o leitor desavisado possa identificar e situar os quatro momentos poéticos diferentes contidos em "Metade da Arte".


Metade da Arte
     Autor: Marcos Siscar
Editora: 7 Letras/Cosac & Naify
Quanto: R$ 20 (176 págs.)
Lançamentos: hoje, na livraria Berinjela (av. Rio Branco, 185, subsolo, loja 10, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2532-3646), às 10h; e dia 28/7 no bar Balcão (r. Dr. Melo Alves, 150, São Paulo, tel. 0/xx/11/3063-6091), às 20h


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