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São Paulo, sábado, 26 de julho de 2003

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"FORA DO ABRIGO"

Obra do crítico e romancista inglês é realista e contida e se distancia de sua ficção de corte satírico

David Lodge deixa o veredicto para a história

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"A história é um veredicto sobre a sorte ou falta de sorte dos que estavam ou não estavam em determinado lugar." A frase, dita num momento já avançado do romance "Fora do Abrigo", do inglês David Lodge, encerra algumas camadas de entendimento e de ironia.
No início, o garoto Timothy, de cinco anos, refugia-se com a mãe no abrigo antiaéreo dos vizinhos. Estamos em plena Segunda Guerra, e os alemães bombardeiam Londres. Num dado momento, ouve-se uma forte explosão. A vizinha, preocupada com o marido que está na rua, sai do abrigo. A filha, uma menina da mesma idade de Timothy, corre atrás. Uma bomba cai lá fora, matando-as. Pode-se dizer que as duas não tiveram sorte e que o veredicto sobre o comportamento adequado teria sido "fique no abrigo"!
Anos mais tarde, Timothy, agora um moço de 16 anos, recebe um convite da irmã mais velha Kath para passar as férias dele em Heidelberg. Kath saíra de casa pouco antes do fim da guerra e fora trabalhar para os americanos em Paris. Com o encerramento do conflito na Europa, transferira-se para a Alemanha.
Em comparação com sua família, que, como todos os ingleses, passa pelos tempos difíceis da retração econômica do início dos anos de 1950, ela desfruta de relativa fartura.
A comunidade americana instalada em Heidelberg vive à larga. Em lojas exclusivas, adquire bens de consumo financeiramente proibitivos para os europeus. Aos americanos, tudo é barato. Eles passam os dias na piscina (também exclusiva), as noites em bares (não exclusivos, mas segregantes) e festas. Um casal de classe média pode celebrar o aniversário da filhota num barco que desce pomposamente o rio Neckar. A vida dos estrangeiros é restrita, opulenta, superficial e feliz.
Kath tivera sorte ao aliar-se aos americanos? É provável. O veredicto: muitas vezes é bom sair do abrigo (familiar, em seu caso). Pois é isso o que ela oferece ao irmão: a oportunidade de ele também viver fora do abrigo. Timothy descobre que o "estar-fora" pode ser ao mesmo tempo perigoso e libertador. E que o risco faz parte da vida.
"Fora do Abrigo" é um "Bildungsroman", um romance de formação, nos moldes de "Um Retrato do Artista Quando Jovem". Ao contrário da obra de James Joyce, porém, que termina na partida do protagonista para Paris, Lodge acompanha o personagem pela educativa viagem ao continente europeu. No posfácio, o autor revela que também tinha em mente o romance "The Ambassadors", de Henry James.
Como no livro do americano, temos um personagem central, cujo ponto de vista acompanhamos e que age na função de emissário para interesses domésticos. Timothy carrega consigo a dúvida da mãe, que acredita que a filha se afastou da moral cristã onde se criou. O rapaz deve averiguar a situação e talvez reconduzir a irmã ao seio familiar. Como o herói do romance jamesiano, é ele quem "se perde", descobrindo o fervilhar da vida ainda que (ou, sobretudo) em meio a um ambiente social supostamente decadente.
"Fora do Abrigo" é a obra mais autobiográfica de Lodge. Realista e contida, não exibe o mesmo humor de sua ficção de corte satírico, como "Small World" e "Paradise News". Também derrapa na resolução de uma subintriga romanesca, que surge mais para o final. Mas é digno e revela uma tênue nota epicurista. Como quando o jovem Timothy reflete sobre a enormidade da frase que abriu estas considerações e chega à seguinte conclusão: "Mas o que podemos fazer senão seguir em frente, com medo e tremendo, esperando que nossa sorte seja suficiente?".


Fora do Abrigo
   
Autor: David Lodge
Tradutor: Therezinha Monteiro Deutsch
Editora: Best Seller
Quanto: a definir (368 págs.)


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