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NINA HORTA
Reminiscências
Maria da Glória fazia pirulitos. Um dia, a luz acabou e ela usou uma vela que, no fim, caiu no tacho
VIDA DE criança. Voltam-me as
sensações, mãos de pai e de
mãe, segurança, felicidade total, confiança. Íamos sair, íamos nos
divertir e rir muito. De vez em quando, dobrariam os braços, eu levantaria as duas pernas e me dependuraria numa carona acima da calçada,
com o coração aos pulos, invadido
de alegria pura.
Perto de casa havia o quê? A doceira Paulista, com muitos docinhos e a
empadinha. No colégio de freiras, no
mês de outubro, tínhamos que vender comida no recreio para arrecadar dinheiro para as Missões. Maria
da Glória fazia pirulitos em casa. Um
dia, a luz acabou, usou uma grande
vela e, no fim, a vela caiu no tacho. Só
depois de vendidos os pirulitos é que
gargalhou, anunciando que talvez ficássemos com as paredes do estômago grudadas.
Eu, com muito tino comercial,
comprava uma bandeja de empadinhas na doceira Paulista e as vendia
um pouco além do preço. Nem fiz
muitas contas, era lucro certo. Só me
dei ao luxo de comer uma empadinha por dia; e, no fim do mês, tive a
nada grata notícia, dada por minha
mãe fazendo as contas, de que diariamente comera o meu lucro. Acabei como comecei, e os missionários
se deram mal.
Também bem perto o Nosso Ponto, com sanduíches perfeitos de pernil. Não poderia dizer no que constituía sua perfeição, mas, quando o pai
chegava do Jockey, numa jornada
especialmente lucrativa, nos convidava para lá.
Com os amigos e amigas, ia-se na
confeitaria Yara. A graça do lugar
eram as mesas todas escritas a canivete com os nomes dos apaixonados,
os Romeus e Julietas do Jardim
América. Foi lá que aprendi que o
leite do chá era frio mesmo, depois
de reclamar do garçom que revirou
os olhos, entediado.
Outro dia, vi que saiu um livro
com a história da Maysa. Maysa, menina, era colega de escola e tínhamos
uma amiga em comum, a Rosaura.
Íamos ao Cine Paulista, para depois
tomar um sorvete, na Augusta com a
Oscar Freire. Ela já era aquela coisa
de um colorido lindo e já tinha dentro de si a Maysa adulta, inteirinha.
Havia as cantinas. Lembro-me da
Cantina 1060. Longe, de verdade,
com gente cantando e um menino
pálido, garçom, muito branco, daquele branco de mármore italiano.
E, ainda por cima, malabarista, de
calças curta pretas. O cantor era cego, e eu me apaixonava um pouquinho pelo menino toda vez que ia lá.
A primeira saída com o namorado
foi na Vieira de Carvalho (sempre
achei que fosse o Fasano, mas me dizem que não), num segundo andar,
com chão de espelho e luz colorida, e
os foxes e boleros de antanho. Talvez eu seja muito crítica, mas provavelmente comemos coquetel de camarão e algum bife com molho francês. Eu vestida de faille verde claro,
cintura de pilão, e sandália dourada.
Éramos bregas no fim dos 50.
Casados, passamos com as crianças para a Cantina do Povo, em Pinheiros. Não tinha nada demais, no
começo. Íamos lá para a pizza, mas o
pai sedutor ficou amigo do Pepe, da
mulher do Pepe, da filha do Pepe.
E a comida foi ficando deliciosa,
feita exclusivamente para nós. Eram
surpresas. Um dia, um franguinho
assado, cheio de gosto; outro dia,
lulas, arrozes de tico-tico. Enfim,
nunca comi tão bem da comida rústica da Itália quanto naquela gloriosa Cantina do Povo. E fui me acos-
tumando a berinjelas, a pimentões,
a sardelas, a camarões gigantes.
Era uma bela festa dominical regada
a Guaraná.
O que me lembro bem era a força
que tinha uma experiência dessas,
nada banalizada. Cada coisa uma
novidade. A alcachofra, quase um
milagre; o peixinho pequeno, tão
miúdo e prata; a sensação de descoberta do mundo. O garçom da Cantina do Povo saiu de lá e trabalhou
com meu pai por 30 anos, tanto os
laços que uniam fornecedores e
clientela. Deixou os frangos e foi trabalhar com ferro e aço. Pois, pois.
ninahorta@uol.com.br
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