São Paulo, quinta-feira, 26 de julho de 2007

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NINA HORTA

Reminiscências

Maria da Glória fazia pirulitos. Um dia, a luz acabou e ela usou uma vela que, no fim, caiu no tacho

VIDA DE criança. Voltam-me as sensações, mãos de pai e de mãe, segurança, felicidade total, confiança. Íamos sair, íamos nos divertir e rir muito. De vez em quando, dobrariam os braços, eu levantaria as duas pernas e me dependuraria numa carona acima da calçada, com o coração aos pulos, invadido de alegria pura.
Perto de casa havia o quê? A doceira Paulista, com muitos docinhos e a empadinha. No colégio de freiras, no mês de outubro, tínhamos que vender comida no recreio para arrecadar dinheiro para as Missões. Maria da Glória fazia pirulitos em casa. Um dia, a luz acabou, usou uma grande vela e, no fim, a vela caiu no tacho. Só depois de vendidos os pirulitos é que gargalhou, anunciando que talvez ficássemos com as paredes do estômago grudadas.
Eu, com muito tino comercial, comprava uma bandeja de empadinhas na doceira Paulista e as vendia um pouco além do preço. Nem fiz muitas contas, era lucro certo. Só me dei ao luxo de comer uma empadinha por dia; e, no fim do mês, tive a nada grata notícia, dada por minha mãe fazendo as contas, de que diariamente comera o meu lucro. Acabei como comecei, e os missionários se deram mal.
Também bem perto o Nosso Ponto, com sanduíches perfeitos de pernil. Não poderia dizer no que constituía sua perfeição, mas, quando o pai chegava do Jockey, numa jornada especialmente lucrativa, nos convidava para lá. Com os amigos e amigas, ia-se na confeitaria Yara. A graça do lugar eram as mesas todas escritas a canivete com os nomes dos apaixonados, os Romeus e Julietas do Jardim América. Foi lá que aprendi que o leite do chá era frio mesmo, depois de reclamar do garçom que revirou os olhos, entediado.
Outro dia, vi que saiu um livro com a história da Maysa. Maysa, menina, era colega de escola e tínhamos uma amiga em comum, a Rosaura. Íamos ao Cine Paulista, para depois tomar um sorvete, na Augusta com a Oscar Freire. Ela já era aquela coisa de um colorido lindo e já tinha dentro de si a Maysa adulta, inteirinha.
Havia as cantinas. Lembro-me da Cantina 1060. Longe, de verdade, com gente cantando e um menino pálido, garçom, muito branco, daquele branco de mármore italiano. E, ainda por cima, malabarista, de calças curta pretas. O cantor era cego, e eu me apaixonava um pouquinho pelo menino toda vez que ia lá. A primeira saída com o namorado foi na Vieira de Carvalho (sempre achei que fosse o Fasano, mas me dizem que não), num segundo andar, com chão de espelho e luz colorida, e os foxes e boleros de antanho. Talvez eu seja muito crítica, mas provavelmente comemos coquetel de camarão e algum bife com molho francês. Eu vestida de faille verde claro, cintura de pilão, e sandália dourada.
Éramos bregas no fim dos 50. Casados, passamos com as crianças para a Cantina do Povo, em Pinheiros. Não tinha nada demais, no começo. Íamos lá para a pizza, mas o pai sedutor ficou amigo do Pepe, da mulher do Pepe, da filha do Pepe. E a comida foi ficando deliciosa, feita exclusivamente para nós. Eram surpresas. Um dia, um franguinho assado, cheio de gosto; outro dia, lulas, arrozes de tico-tico. Enfim, nunca comi tão bem da comida rústica da Itália quanto naquela gloriosa Cantina do Povo. E fui me acos- tumando a berinjelas, a pimentões, a sardelas, a camarões gigantes.
Era uma bela festa dominical regada a Guaraná. O que me lembro bem era a força que tinha uma experiência dessas, nada banalizada. Cada coisa uma novidade. A alcachofra, quase um milagre; o peixinho pequeno, tão miúdo e prata; a sensação de descoberta do mundo. O garçom da Cantina do Povo saiu de lá e trabalhou com meu pai por 30 anos, tanto os laços que uniam fornecedores e clientela. Deixou os frangos e foi trabalhar com ferro e aço. Pois, pois.

ninahorta@uol.com.br


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