São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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Mônica Bergamo

@ - bergamo@folhasp.com.br

Aos 74 anos, Waldick Soriano, do clássico "Eu não sou cachorro, não", lança CD, DVD e revive os tempos da noite paulistana: janta no Filé do Moraes, bebe uísque e canta em inferninho, ao lado da atriz Patrícia Pillar, sua "filha" e diretora musical

Ana Ottoni/Folha Imagem
O cantor, em frente ao bar Boemia: "Não posso negar que sofro de amor. Quem não sofre? O amor existe, mas tá mais difícil que a volta de Jesus Cristo!"

a volta do boêmio

Já é madrugada em São Paulo e no bar Boemia, no centro da cidade, garotas de programa entoam o coro de "Tortura de Amor", de Waldick Soriano. "Hoje que a noite está calma e que minh'alma esperava por ti...", canta Lígia Homem, fã do cantor. "É a música da gente, do amor proibido", diz ela, de mini vestido branco e perfume adocicado, "à procura de trabalho" na sexta-feira. Na noite seguinte, no mesmo sofá de couro à meia-luz, Waldick, o ídolo de Lígia, vai cantar no "bar". "Jura? Que sonho!"

 

Waldick está em SP com a atriz Patrícia Pillar, sua diretora musical no novo CD, lançado nesta semana. À convite da coluna, os dois refazem, num sábado à noite, um dos caminhos percorridos pelo cantor nos anos 60 e 70: um jantar no Filé do Moraes, na praça Júlio Mesquita, e cantoria num dos inferninhos daquela época. Hospedado num hotel da Oscar Freire, Waldick, com o tradicional chapéu e os óculos escuros, aparece na recepção. "Menina, menina...", abraça Patrícia, de vestidinho preto e bota.
 

"Vamos combinar uma coisa: ele não pode beber. Estamos trabalhando", avisa a atriz à equipe de filmagem que acompanhará a noite para o documentário que ela faz sobre o músico. "É um senhor e precisa se preservar."
 

"Uma dose de cowboy, señor!" É Waldick que, na primeira parada, no Filé do Moraes, chama o garçom. Vem a primeira dose. Patrícia pede cerveja e cochicha com o gerente. Quer que ele demore para trazer a próxima dose. "Menina, como você toma cerveja de cara? Primeiro tem que tomar uma cana!", diz Waldick. Ele pede um filé mal passado. "Outro dia me perguntaram o que é a Patrícia pra mim. Eu disse: "É minha filha. A filha que não tive". Daí disseram: "Mas o senhor não teve filhos?" E eu expliquei: "Tenho filho em tudo quanto é canto do mundo, mas ela é a que eu não tive, oras'!".
 

"Mas o uísque é de rosca aqui, hein?", reclama Waldick, no restaurante. Enquanto isso, a "filha" faz sinais quase silenciosos para que os garçons atrasem a bebida. Sem resultado. Minutos depois, a segunda dose já está no copo.
 

Waldick chegou a SP com 27 anos, em 1960, saído de Caetité, no interior da Bahia. Trabalhava no garimpo de seu pai, comerciante de ametistas. "Fiquei dois anos lá, sem mulher. O único barulho era de onça brava. A lata vazia [de água, levada até aos garimpeiros] dava um som. Então, eu fazia música. Já tinha dentro de mim aquele sentimento, as minhas mágoas." Entre elas, a separação dos pais e as tentativas da mãe em retomar sua guarda.
 

"Ela me roubou e me colocou numa bruaca [tipo de bolsa de couro] no lombo do burro. Meu pai foi atrás e me pegou de volta. Eu, que tinha cinco anos, lembro até hoje dela partindo no carro de boi. Não senti saudade. Porque eu tinha esperança que ela voltasse. Quando ela morreu, eu tinha 11 anos. Daí, senti saudade."
 

"Você viu? Ele é um homem doce", diz Patrícia, que não gosta do rótulo de brega, que o cantor ganhou ao longo da carreira. "São mais de 80 discos, com arranjadores incríveis." Ela o acompanha há dois anos e acumula mais de 80 horas de imagens para um documentário. "Eu gosto dessa música de dançar de rosto colado. E, no CD, ele canta com uma orquestra. É música de qualidade." Na saída do Filé do Moraes, uma criança pede dinheiro a Waldick. "Juízo, menino, juízo", diz o cantor. Patrícia dispara: "Você está na escola, menino?" E ele, com os braços por dentro da camiseta, na noite de 12C de SP: "Eu moro na rua, tia".
 

Quando o cantor chega ao bar da rua Avanhandava, confusão: um homem se aproxima, grita que é seu filho, Walmick, e que quer conversar. O empresário do músico, Renato Black, entra na frente. Patrícia carrega Waldick para dentro, os seguranças aparecem e Walmick vai embora. "Ele nunca gostou do pai", diz Black. Dois dias depois, em outra festa, no Rio de Janeiro, o filho reapareceu e eles se reconciliaram, com troca de beijos.
 

"Aceita alguma coisa para beber, senhor?", pergunta Moisés Marques, gerente do bar. "Uísque, señor!" E lá vai Patrícia, correndo atrás do garçom... "Põe bem pouquinho, tá? Por favor." Mas o gerente não deixa o copo vazio.
 

"Tô na noite há 43 anos. Servi muito o Waldick no Clube de Paris, na rua Araújo. Ele fazia show lá com a Cláudia Barroso. Era coisa fina. O Roberto Carlos chegava cabeludo, com a guitarra, e era barrado", conta. "Passei pelo Love Story, Metrópolis, Michel... Recebi Chiquinho Scarpa, Emerson Fittipaldi, Álvaro Garnero, Pelé, Luana Piovani... Mas se você me perguntar quem fez o que, eu não lembro, não vi, não sei."
 

Na noite em que Waldick está no bar, surgem fãs que passam pela rua, mas quase nenhuma garota de programa. "Bom, você sabe... Sábado é pra mulher oficial", diz Moisés. "Quem vem aqui é porque brigou com a mulher. O cara quer ouvir música de fossa. Vamos e convenhamos, ele tá com problema de corno! E se não tem motivo pra brigar com a mulher, inventa um, pra poder ir pra noite."
 

Passa de meia-noite quando Waldick sobe ao palco. Canta uma, duas, três... nove músicas. "Mais combustível", pede ao garçom, erguendo o copo vazio. "Não posso negar que sofro de amor. Quem não sofre? O amor existe, mas tá mais difícil que a volta de Jesus Cristo!", diz ele, que atualmente está sozinho.
 

E completa: "Esse jovem de 74 anos não tem mais ilusões. Sabe, filha, felicidade eu nunca vi, não conheço essa mulher. Mas profissionalmente eu bato no peito: sou um homem completo, pleno. Quando eu saí de Caetité, meu pai me disse: "Cê vai, mas cê volta". Eu respondi: "Se eu vencer, eu volto. Se não, eu não volto mais'". E voltou? "Voltei. Voltei com tudo."


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