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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Apologia de Buenos Aires
Amar Buenos Aires é como dançar em Buenos Aires: uma suspensão da realidade antes de regressar à realidade
AI, BRASIL, terei perdão? Nas
vésperas de viajar para Buenos Aires, confessava o crime
aos meus amigos paulistanos. Eles
respondiam com piadas e piadas e
piadas. Na minha qualidade de português, a coisa soava familiar. "Piadas" e "portugueses" são o casamento brasileiro mais perfeito. Com
uma diferença: nas piadas, os portugueses são toscos e razoavelmente
analfabetos. Argentinos são o contrário: arrogantes e profundamente
egocêntricos. Relembro uma: vocês
sabem por que o argentino gosta de
subir à Torre Eiffel? Resposta: para
ver como fica Paris sem ele. Obrigado, Nelson Ascher.
Mas, desculpa, Nelson Ascher: a
piada é tão boa, e tão elegante, que só
pode ser obra tua. Ou, pior ainda,
obra de um argentino. Porque eles
são bons e elegantes. Chego a Buenos Aires com o cérebro programado para não ceder às sereias. Meia
hora depois, eu e as sereias dançamos o tango numa milonga portenha. Ai, Brasil, terei perdão?
A culpa não é minha. A culpa é do
Altíssimo. Dizem os textos sacros,
por Ele inspirados, que a onipresença é prerrogativa do divino. Mentira.
Buenos Aires é a exceção. Explico.
Vocês podem viajar para a Inglaterra. Vocês podem viajar para a Itália.
Mas vocês não podem viajar para
Inglaterra e Itália ao mesmo tempo.
Eu confesso que já viajei para ambas. Já morei em ambas. Já fui feliz e
infeliz em ambas, como compete à
natureza humana. Com os ingleses,
aprendi a ler, a escrever e a pensar.
Com os italianos, talvez a amar, porque ninguém ama a vida como eles.
Mas faltava sempre a outra parte: a
elegância intelectual britânica torna-se cansativa e mesmo estéril sem
o vigor da teatralidade mediterrânica. E vice-versa. Não agüento tanto
gesto e tanto excesso sem um minuto de melancolia outonal. Como viver dois tempos num mesmo?
Buenos Aires é a cidade dos dois
tempos. E os argentinos, numa combinação perfeita e muito deles, conseguem ser elegantes e teatrais,
apaixonados e racionais, elevando a
vida comum a um número pleno de
lirismo e encantamento. Não são os
restaurantes de Palermo Viejo, os
cafés da 25 de Mayo ou os livros do
cinema Ateneo, onde me arruinei
sem culpa nem retorno, que transformam Buenos Aires num milagre
em forma humana. São os próprios
seres humanos. Só os argentinos seriam capazes de transformar uma
corrida de cavalos no mais belo e
passional tango que existe.
Chama-se "Por una cabeza" e foi
Gardel quem o fez para os pares de
todas as idades que desfilam à minha frente. Contemplo. Dizem que o
tango é uma emanação do sexo, com
os corpos em confronto sem refúgios. Talvez seja. Mas, olhando mais
de perto, percebo agora que a comparação só é possível não pelo movimento dos corpos mas porque a mulher se rende à condução do homem
e executa os passos de olhos fechados. É uma entrega total em que um
dos sentidos se apaga para que despertem todos os outros.
Amar Buenos Aires é como dançar
em Buenos Aires: uma suspensão da
realidade antes de regressar à realidade. Antes de subirmos ao espelho
de todos os dias para vermos, afinal,
como ficamos sem Buenos Aires.
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