São Paulo, sábado, 26 de setembro de 2009

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LIVROS

Crítica/"As Vozes do Sótão"

Excesso de artifícios prejudica romance de Paulo Rodrigues

Escritor paulista recorre a ironia e estranhamento para contar história de alfaiate

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de um breve e bonito romance ("À Margem da Linha") e de um volume de contos ("Redemoinho"), Paulo Rodrigues apresenta uma narrativa que, como avisa, "não se estica numa linha reta, limpa e concisa".
Com efeito, "As Vozes do Sótão" recorre a muitas camadas de ironia e estranhamento para contar a história de um certo Damiano, alfaiate meio paranoico, que está convicto de ser traído pela mulher, e embarca para a cidade de Montevidéu.
Pensões sufocantes, mulheres devassas, limitações morais (estamos nos anos 50), conhaques e sedativos, sem contar a voz imaginária que o leva a atitudes de ódio e ressentimento, colocam o personagem em um meio caminho entre os grandes loucos de Dostoiévski e a linhagem brasileira daqueles tímidos personagens suburbanos que têm em "O Amanuense Belmiro", de Cyro dos Anjos, um típico representante. O risco, em histórias assim, é cair no patético (se o lado dostoievskiano for muito acentuado) ou em autopiedade morna (do lado nacional-suburbano).
A saída de Rodrigues foi contar a história do modo mais oblíquo possível. Obliquidade não significa sutileza, entretanto. Exageros e extravagâncias entram no romance, uma vez que é o próprio Damiano quem ocupa o papel de narrador.
Mas esse simples recurso do "narrador inconfiável" não basta ao autor. Na segunda parte do livro, a voz do narrador se divide em outras duas. A história passa a ser contada por "Guido", alter ego de Damiano, enquanto uma terceira voz narrativa repete, duplica e se adianta ao que estávamos lendo.
O resultado, intencionalmente artificial, haverá de ser cômico ou irritante conforme o gosto do leitor. Quando do lançamento de "À Margem da Linha", fiz uma resenha elogiosa do livro aqui na Ilustrada, sem deixar de notar o grande número de clichês que apareciam em cada página.
A meu ver, os clichês simbolizavam a distância percorrida entre o narrador adulto e o protagonista da história, um menino que aos poucos ia perdendo a possibilidade de viver em contato pleno com a natureza. A artificialidade do mundo moderno se impunha sobre o personagem, deturpando de propósito o estilo do livro. No novo romance, o recurso à frase feita e à redundância assume características exasperadas. O narrador tem suas noites "povoadas" de pesadelos, está pronto a "afundar para sempre nas reminiscências", tem uma mulher que faz "gastos desnecessários, comprando artigos supérfluos", sofre de "depressão profunda" etc.
Tudo isso contribui, é certo, para o aspecto caricato do protagonista; mas não deixa de irritar, quando se imagina que a caricatura não provém da necessidade expressiva real, mas sobretudo dos esforços do autor para que a narrativa não se torne patética demais.
Seja como for, tanto em "À Margem da Linha" quanto neste "As Vozes do Sótão", Rodrigues tem o dom de terminar lindamente as histórias que conta. Os parágrafos finais de "As Vozes do Sótão", num tom de apaziguamento e de conciliação com a morte, conseguem superar, e em certa medida justificam, o acúmulo de artifícios narrativos a que o romance deve seu precário equilíbrio.


AS VOZES DO SÓTÃO

Autor: Paulo Rodrigues
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 40 (144 págs.)
Avaliação: regular




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