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LIVROS
Crítica/"As Vozes do Sótão"
Excesso de artifícios prejudica romance de Paulo Rodrigues
Escritor paulista recorre a ironia e estranhamento para contar história de alfaiate
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Depois de um breve e
bonito romance ("À
Margem da Linha") e
de um volume de contos ("Redemoinho"), Paulo Rodrigues
apresenta uma narrativa que,
como avisa, "não se estica numa linha reta, limpa e concisa".
Com efeito, "As Vozes do Sótão" recorre a muitas camadas
de ironia e estranhamento para
contar a história de um certo
Damiano, alfaiate meio paranoico, que está convicto de ser
traído pela mulher, e embarca
para a cidade de Montevidéu.
Pensões sufocantes, mulheres devassas, limitações morais
(estamos nos anos 50), conhaques e sedativos, sem contar a
voz imaginária que o leva a atitudes de ódio e ressentimento,
colocam o personagem em um
meio caminho entre os grandes
loucos de Dostoiévski e a linhagem brasileira daqueles tímidos personagens suburbanos
que têm em "O Amanuense
Belmiro", de Cyro dos Anjos,
um típico representante.
O risco, em histórias assim, é
cair no patético (se o lado dostoievskiano for muito acentuado) ou em autopiedade morna
(do lado nacional-suburbano).
A saída de Rodrigues foi contar
a história do modo mais oblíquo possível. Obliquidade não
significa sutileza, entretanto.
Exageros e extravagâncias entram no romance, uma vez que
é o próprio Damiano quem
ocupa o papel de narrador.
Mas esse simples recurso do
"narrador inconfiável" não basta ao autor. Na segunda parte
do livro, a voz do narrador se divide em outras duas. A história
passa a ser contada por "Guido", alter ego de Damiano, enquanto uma terceira voz narrativa repete, duplica e se adianta
ao que estávamos lendo.
O resultado, intencionalmente artificial, haverá de ser
cômico ou irritante conforme o
gosto do leitor.
Quando do lançamento de "À
Margem da Linha", fiz uma resenha elogiosa do livro aqui na
Ilustrada, sem deixar de notar
o grande número de clichês que
apareciam em cada página.
A meu ver, os clichês simbolizavam a distância percorrida
entre o narrador adulto e o protagonista da história, um menino que aos poucos ia perdendo
a possibilidade de viver em
contato pleno com a natureza.
A artificialidade do mundo moderno se impunha sobre o personagem, deturpando de propósito o estilo do livro.
No novo romance, o recurso
à frase feita e à redundância assume características exasperadas. O narrador tem suas noites
"povoadas" de pesadelos, está
pronto a "afundar para sempre
nas reminiscências", tem uma
mulher que faz "gastos desnecessários, comprando artigos
supérfluos", sofre de "depressão profunda" etc.
Tudo isso contribui, é certo,
para o aspecto caricato do protagonista; mas não deixa de irritar, quando se imagina que a
caricatura não provém da necessidade expressiva real, mas
sobretudo dos esforços do autor para que a narrativa não se
torne patética demais.
Seja como for, tanto em "À
Margem da Linha" quanto neste "As Vozes do Sótão", Rodrigues tem o dom de terminar
lindamente as histórias que
conta. Os parágrafos finais de
"As Vozes do Sótão", num tom
de apaziguamento e de conciliação com a morte, conseguem
superar, e em certa medida justificam, o acúmulo de artifícios
narrativos a que o romance deve seu precário equilíbrio.
AS VOZES DO SÓTÃO
Autor: Paulo Rodrigues
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 40 (144 págs.)
Avaliação: regular
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