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CONTARDO CALLIGARIS
As crianças do divórcio
De 31 de outubro a 4 de novembro, acontecerá em Curitiba o Congresso Internacional
de Ética e Cidadania. Apresentarei um relatório sobre as mudanças na família contemporânea.
É um tema ideal para um encontro no qual dialogarão juristas e psicanalistas. Pois, no caso
da família, é possível verificar como as mudanças jurídicas pesam
na transformação de nossa subjetividade.
Começarei por 1969, quando,
na Califórnia, aceitou-se que maridos e mulheres se divorciassem
sem pretextar adultérios ou crueldades físicas e mentais. Os legisladores ratificaram, assim, a opinião da maioria. Claro, há casamentos em que os cônjuges traem
a confiança recíproca ou passam
o tempo se jogando louça na cabeça. Mas, pensavam os californianos, na maioria dos casos, isso
não é necessário para querer se
separar. Chega de ter que inventar amantes e manchas roxas para convencer o juiz.
A lei autorizou, então, que dois
adultos casados pudessem separar-se, desde que um deles, sem
dramas e culpas, simplesmente
não estivesse mais a fim. Você sabe como é, o tempo passa, o amor
se perde, as crianças gritam, os
cabelos do parceiro embranquecem e a pessoa se pergunta: não
será a hora de viver dias mais
agradáveis?
A lei californiana conquistou
rapidamente o resto dos Estados
Unidos e do mundo. Ganhou até
nos lugares onde se divorciar continuou sendo complicado. Pois, de
qualquer forma, a lei californiana
promoveu um novo padrão de racionalidade em matéria de casamento. Tornou-se banal considerar que é legítimo (ou seja, justo,
mesmo se não for legal) separar-se, quebrar uma família, quando
um dos dois ou os dois acham que
o laço perdeu a graça.
Faz sentido. Tentar ser feliz é
um direito moderno. Por que deixaríamos que o casamento infernizasse nossa vida? Com a facilidade dos divórcios, surgiu a pergunta: como as crianças lidarão
com essa experiência?
A psicologia produziu uma série
de afirmações apressadas. Sem
verificar, assegurou que seria
muito melhor para os filhos lidar
com a separação dos pais que assistir às suas brigas cotidianas e à
sua constante infelicidade. Geralmente, acrescentou que, por mais
que seja doloroso, o divórcio, para
a criança, seria uma crise passageira.
Essas idéias eram palavras para
justificar uma prática social que
corresponde aos desejos dos adultos. J.Wallerstein, J.Lewis e S.Blakeslee acabam de publicar "The
Unexpected Legacy of Divorce"
(A herança inesperada do divórcio, Hyperion, NY), em que pesquisam filhos e filhas de divorciados ao longo de 25 anos. Demonstram que, para as crianças, o divórcio não é uma crise passageira,
mas acarreta consequências que
incidem sobre a vida adulta. Salvo casos de violência explícita, as
crianças são mais felizes com
uma família que se mantenha
unida, mesmo que seja de briga
em briga.
No livro, o divórcio é culpado
por todo tipo de sequela nas
crianças, desde depressões severas
até dificuldades tardias na vida
sentimental e amorosa. Os fatos
são convincentes, mas faz falta
uma explicação mais satisfatória
que a trivialidade segundo a qual
o divórcio seria traumático por
produzir abandono ou, no mínimo, negligência por parte dos pais
-muito preocupados em refazer
suas vidas.
Ora, numa recente emissão de
rádio consagrada ao livro, um sujeito telefonou para comentar:
"Pois é, concordo com tudo, mas
será que os pais não têm direito
de ser um pouco felizes?".
A pergunta manifesta qual foi a
mudança subjetiva ratificada pela lei californiana e desde então
adotada pela consciência moderna. Ela diz que o projeto de ser feliz é mais importante do que
qualquer obrigação -inclusive a
de criar as crianças no quadro de
uma família. Os pais que se divorciam transmitem esta opção a
seus rebentos, que se tornam, portanto, os arautos da nova disposição subjetiva, assim resumida: o
que mais importa é se dar bem.
A mudança em questão explica
muito do que nos estranha na
conduta das crianças do divórcio
e, por extensão, dos jovens. Pois,
quer seus pais sejam divorciados
quer não, todos os jovens pertencem hoje à (primeira) geração do
divórcio. São filhos da época em
que a única obrigação institucional que sobreviveu na modernidade -a da família- cedeu, enfim, diante do ditado: procure sua
felicidade individual!
Não é o caso de moralizar sobre
essa mudança institucional e subjetiva. Seria apenas um exercício
de nostalgia estéril e um pouco hipócrita. As autoras do livro sugerem uma série de medidas terapêuticas e preventivas para ajudar as crianças do divórcio. São
idéias para limitar os danos, pois
é duvidoso que possamos resistir
a uma mudança já incorporada
por nossa cultura.
Muitas vezes nos queixamos,
porque nossos rebentos se engajariam pouco em causas nobres, se
drogariam mais, tentariam prosperar sem suar nenhuma camisa
e outros lugares-comuns da besteira parental. De fato, os ditos rebentos respondem ao que lhes foi
transmitido quando decidimos
que nosso anseio de felicidade,
conforto e prazer não deve recuar- nem mesmo pelo bem deles.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
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