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CRÍTICA ROMANCE
Mutarelli marca trama com desconfiança
"Nada me Faltará", do escritor paulistano, apresenta narrativa sobre desdobramentos de amnésia inexplicada
A LINGUAGEM É
TÃO PRÓXIMA DO
NOSSO DIA A DIA,
O RITMO É TÃO
FUGAZ QUE A
NARRATIVA PARECE
MESMO MUITO
PLAUSÍVEL. MAS
QUEM PODE
ESTAR ENGANADO
É O LEITOR
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
De um homem dado como
desaparecido há cerca de um
ano, cuja mulher e filha também desapareceram, e que
subitamente surge como que
do nada, espera-se, no mínimo, que ele queira saber do
paradeiro das outras duas.
Mas não.
Paulo não se lembra de nada, nem de que havia sumido, nem de sua mulher e filha
e, pior, não sente falta delas.
Afinal, mal retém a memória de tê-las conhecido.
E, daquilo que resta, sente o alívio de não precisar reviver tudo.
Mas a questão do mais novo romance de Lourenço Mutarelli, "Nada me Faltará", é
justamente aquilo que se espera de alguém.
Paulo desapareceu, mas
não é vítima de sua suposta
amnésia: torna-se, pela pressão e expectativa da mãe, da
polícia, dos amigos, do chefe, do terapeuta, o culpado
de seu esquecimento.
Deveria lembrar-se; ir
atrás de pistas; sentir falta;
preocupar-se; tentar se reerguer. Mas nada disso realmente acontece.
Paulo se acomoda na casa
da mãe, não quer voltar a trabalhar, não quer se lembrar
e, de alguma maneira que ele
não faz a menor questão de explicar, sente-se livre.
Resultado, não lógico,
mas surpreendente: deve ser
o assassino de sua filha e de sua mulher.
Numa narrativa toda rápida, minimalista (segundo as
palavras do próprio autor),
em que as ações dos personagens vão sendo reveladas
não por descrições do narrador, mas por meio de suas
ações e de suas falas verossímeis, mas estranhas, o leitor
começa a desconfiar não só
de Paulo, mas de todos os que o cercam.
Por que seu amigo Carlos se esmera tanto em salvá-lo?
Por que sua mãe o trata com tamanha desconsideração?
Será que o terapeuta tem algum interesse oculto, enviando o paciente até para a hipnose?
E o pior, a pergunta que subjaz a todas as narrativas de ficção: será que tudo isso
está mesmo acontecendo?
ESTRANHAMENTO
Afinal, a linguagem é tão
próxima do nosso dia a dia, o
ritmo é tão fugaz, uma ironia
fina faz com que todas as personagens sejam tão medíocres, que a narrativa parece
mesmo muito plausível e os
personagens são todos reconhecíveis. Mas alguma coisa
estranha subsiste e, no frigir
dos ovos, quem pode estar enganado é o leitor.
Nada fica muito explicitado: a mãe de Paulo estranha
seu comportamento "blasé",
mas não se explica; Carlos
parece ter muito mais implicações além da amizade; o
investigador desconfia que
Paulo seja um assassino,
mas não expõe claramente
os motivos; há uma garota de
quem Paulo se lembra de ter
gostado, após a ridícula sessão de hipnose, mas ela também não parece ter muita importância.
ANTICLÍMAX
Todos, portanto, parecem
ter razões escusas, ambiguidades, mas só Paulo, o desmemoriado sem culpa, é que
deve ser responsabilizado.
O texto corre vertiginoso, e o penúltimo capítulo reserva uma surpresa.
Mas algo do ritmo e da dúvida se perdem em algum momento da narrativa, especialmente no final, produzindo um anticlímax que a faz murchar sem explicação.
Quando o texto não se conclui, seria bom, no mínimo, manter o nível da tensão.
NADA ME FALTARÁ
AUTOR Lourenço Mutarelli
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 37 (136 págs.)
AVALIAÇÃO bom
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