São Paulo, terça-feira, 26 de outubro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Mutarelli marca trama com desconfiança

"Nada me Faltará", do escritor paulistano, apresenta narrativa sobre desdobramentos de amnésia inexplicada

A LINGUAGEM É TÃO PRÓXIMA DO NOSSO DIA A DIA, O RITMO É TÃO FUGAZ QUE A NARRATIVA PARECE MESMO MUITO PLAUSÍVEL. MAS QUEM PODE ESTAR ENGANADO É O LEITOR

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

De um homem dado como desaparecido há cerca de um ano, cuja mulher e filha também desapareceram, e que subitamente surge como que do nada, espera-se, no mínimo, que ele queira saber do paradeiro das outras duas.
Mas não.
Paulo não se lembra de nada, nem de que havia sumido, nem de sua mulher e filha e, pior, não sente falta delas.
Afinal, mal retém a memória de tê-las conhecido.
E, daquilo que resta, sente o alívio de não precisar reviver tudo.
Mas a questão do mais novo romance de Lourenço Mutarelli, "Nada me Faltará", é justamente aquilo que se espera de alguém.
Paulo desapareceu, mas não é vítima de sua suposta amnésia: torna-se, pela pressão e expectativa da mãe, da polícia, dos amigos, do chefe, do terapeuta, o culpado de seu esquecimento.
Deveria lembrar-se; ir atrás de pistas; sentir falta; preocupar-se; tentar se reerguer. Mas nada disso realmente acontece.
Paulo se acomoda na casa da mãe, não quer voltar a trabalhar, não quer se lembrar e, de alguma maneira que ele não faz a menor questão de explicar, sente-se livre.
Resultado, não lógico, mas surpreendente: deve ser o assassino de sua filha e de sua mulher.
Numa narrativa toda rápida, minimalista (segundo as palavras do próprio autor), em que as ações dos personagens vão sendo reveladas não por descrições do narrador, mas por meio de suas ações e de suas falas verossímeis, mas estranhas, o leitor começa a desconfiar não só de Paulo, mas de todos os que o cercam.
Por que seu amigo Carlos se esmera tanto em salvá-lo?
Por que sua mãe o trata com tamanha desconsideração?
Será que o terapeuta tem algum interesse oculto, enviando o paciente até para a hipnose?
E o pior, a pergunta que subjaz a todas as narrativas de ficção: será que tudo isso está mesmo acontecendo?

ESTRANHAMENTO
Afinal, a linguagem é tão próxima do nosso dia a dia, o ritmo é tão fugaz, uma ironia fina faz com que todas as personagens sejam tão medíocres, que a narrativa parece mesmo muito plausível e os personagens são todos reconhecíveis. Mas alguma coisa estranha subsiste e, no frigir dos ovos, quem pode estar enganado é o leitor.
Nada fica muito explicitado: a mãe de Paulo estranha seu comportamento "blasé", mas não se explica; Carlos parece ter muito mais implicações além da amizade; o investigador desconfia que Paulo seja um assassino, mas não expõe claramente os motivos; há uma garota de quem Paulo se lembra de ter gostado, após a ridícula sessão de hipnose, mas ela também não parece ter muita importância.

ANTICLÍMAX
Todos, portanto, parecem ter razões escusas, ambiguidades, mas só Paulo, o desmemoriado sem culpa, é que deve ser responsabilizado.
O texto corre vertiginoso, e o penúltimo capítulo reserva uma surpresa.
Mas algo do ritmo e da dúvida se perdem em algum momento da narrativa, especialmente no final, produzindo um anticlímax que a faz murchar sem explicação.
Quando o texto não se conclui, seria bom, no mínimo, manter o nível da tensão.


NADA ME FALTARÁ
AUTOR Lourenço Mutarelli
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 37 (136 págs.)
AVALIAÇÃO bom




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