São Paulo, segunda, 26 de outubro de 1998

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Dias de Ira

da Equipe de Articulistas

"Dias de Ira" (1943) é uma história de amor e bruxaria, inspirada em romance do escritor dinamarquês Wilhelm Jensen (1873-1950), que no ano seguinte ganharia o Nobel de literatura.
No século 17, Martin (Preben Lerdorff-Rye), filho do pastor Absalon Pedersson (Thirkild Roose), apaixona-se por sua madrasta, a jovem Anne (Lisbeth Movin).
Filha de uma bruxa, Anne é acusada de também ser bruxa e de causar, pela força do pensamento, a morte de Absalon, para ficar com o enteado.
Uma história poderosa, que Dreyer conduz com tanta sutileza e equilíbrio que, ao fim, todas as leituras são possíveis: a mística (a bruxaria matou Absalon), a realista (sua morte foi natural) e a romântica (ele foi morto pelo amor).
Mas não é propriamente o enredo que faz de "Dias de Ira" uma das obras-primas do cineasta dinamarquês Carl Theodore Dreyer (1889-1968), e sim a perfeição de sua construção plástica e rítmica.
Como notou o crítico francês André Bazin, Dreyer -um dos maiores estetas da história do cinema, ao lado de Murnau e Eisenstein- busca e alcança aqui, "graças a uma admirável ciência das luzes e do enquadramento", o estilo da pintura flamenga.
De fato, não são poucos os momentos do filme que sugerem um Rembrandt em preto-e-branco e em movimento: travellings e panoramas sutis, longos planos-sequência que procuram menos expor o ambiente que revelar o estado de espírito dos personagens.
Tudo, na imagem de Dreyer, são portas para a alma: os rostos dos personagens, captados em pormenor e sem maquiagem, a cenografia austera, os gestos hieráticos, o ritmo cadenciado.
No singular "realismo espiritual" do cineasta, nada -palavra, objeto, gesto ou nota musical- é supérfluo ou ornamental.
Esse mundo de extrema depuração formal aponta para a abstração geométrica: na calma quase monótona dos movimentos horizontais, o drama desponta aqui e ali na forma inesperada de um elemento vertical (uma porta, uma escada, um corpo humano), assim como um grito instaura de repente o pavor em meio à aparente serenidade dos diálogos sussurrados.
O filme todo é perfeito, mas cabe destacar alguns momentos, como a panorâmica que expõe alternadamente os rostos dos amantes Anne e Martin diante do caixão do pastor e a nudez da velha bruxa (Marthe Herloff), considerada por François Truffaut o mais belo nu de todo o cinema ("o menos erótico e o mais carnal").
Inédito nos cinemas brasileiros, "Dias de Ira" é, ao lado de "A Paixão de Joana D'Arc , "Vampyr" e "Ordet - A Palavra", uma das obras máximas de Dreyer.
Pena que na fita lançada pela Continental as legendas omitam metade dos diálogos, a imagem esteja trêmula e o som cheio de ruídos indesejáveis.
(JGC) ²
Vídeo: Dias de Ira Produção: Dinamarca, 1943, 95 min. Direção: Carl T. Dreyer Elenco: Thirkild Roose, Lisbeth Movin, Preben Lerdorff-Rye Lançamento: Continental (tel. 011/287-2696)


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