São Paulo, sexta-feira, 26 de novembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O relógio digital

Porteiro do Tribunal de Justiça, Tomás Antônio da Silva teve um infarto aos 45 anos, passou um mês no hospital do Ipase, aconselhado por um desembargador que desejava abrir vaga para nomear um afilhado, e aceitou se aposentar por invalidez. Ganharia mais 20% do salário, ficaria em casa, cuidando da saúde.
Tomás topou a idéia. Em cinco anos, a inflação comeu-lhe o ordenado. Depois de pagar o aluguel da casa que entrara em decomposição, com paredes infiltradas e encardidas, o que restava do salário não dava para uma semana de almoço e jantar todos os dias. Tirou a filha mais velha, Rosa Maria, do colégio. Ela precisava trabalhar para ajudar nas despesas gerais. O outro filho, Almir, com dez anos, também deixaria os estudos, fazia o primário numa escola pública. Mais tarde, também entraria com sua cota de trabalho.
Aos 50 anos, Tomás assumira a pobreza na qual vivera e, agora, sua única preocupação era não descer à miséria total. Felizmente, havia Rosa Maria, que terminara o ginásio. Ela arranjaria um emprego e poderia colaborar. Sentia-se uma ruína.
No dia em que Rosa Maria comunicou que tinha arranjado emprego, Tomás não gostou. Recepcionista não era bem o que ele pretendera para a filha.
- E o salário?
- O mínimo. Depois aumentam. Foi o que disseram.
- Sempre dizem isso.
- Foi o que pintou, pai.
Tomás ia comentar qualquer coisa, mas preferiu calar. No primeiro mês, Rosa Maria colaborou nas despesas com pouco, mas agora gastava com condução, lanche, tudo custava dinheiro. Ele sentia vergonha em abordar o assunto com a filha. Que desse o que desse. "E dará cada vez menos", profetizou dona Ana, que conhecia a filha.
Tomás concentrou-se em outra idéia: mais dia menos dia, Rosa se casaria. Tivera namorados circunstanciais, rapazes do subúrbio, bancários, comerciários de Madureira ou de Campo Grande. Não sentia a possibilidade de um futuro radioso para a filha, mas não se desesperava.
Até que se desesperou de vez, teve um troço novamente no coração que quase o matou. Rosa demorara a chegar. Ninguém lhe pedia satisfações, mas também não era normal uma moça de 20 anos chegar em casa muito depois da meia-noite.
- Alguma coisa, filha? Estava preocupado.
Dona Ana foi mais rápida:
- Arranjou namorado?
Rosa examinou o pai. O pijama ralo e vagabundo de Tomás cheirava à pobreza, ao início da miséria que rondava a casa.
- Não. Arranjei um amante... um homem casado... Ele gosta de mim.
- Mas... você gosta dele?
- É um homem bom. Muito bom mesmo.
- Mas é casado!, rugiu Tomás. - Ele está pensando que você é...
- Cala a boca, Tomás! -gritou dona Ana-, Rosa sabe o que faz!
- Não estou me vendendo, pai. Lobianco é um jornalista, falou francamente comigo. Já tínhamos saído outras vezes... hoje decidimos... ele pediu que me mudasse para mais perto... acha Quintino longe...
- Ele levou você para um hotel?
Tomás queria saber tudo, com uma curiosidade mórbida, devastadora.
- Hoje não foi a primeira vez. Apenas... parece que ele está mesmo gostando de mim... não pode nem quer se separar da esposa, tem uma filha da minha idade...
- Um velho! -berrou o pai.
- Ele tem a sua idade, pai. Mas parece que podia ser seu filho.
Dona Ana resumiu a conversa de forma fulminante:
- Rico não fica velho, Tomás! Só a gente.
Rosa percebeu que ofendera o pai. Tentou consertar. Tomás começou a sentir sufocações, levou a mão ao peito, desabou sobre a cama, arfando. Chamaram a ambulância.
Dois meses depois, Tomás foi com dona Ana ver o apartamento que Lobianco alugara para eles: uma sala com janelas dando para o Sumaré, dois quartos razoáveis, banheiro e cozinha, condução farta, na porta.
E Lobianco, de quem Tomás passara a ler sem entender as crônicas internacionais, fora generoso com Almir. Em vez de se empregar nas Casas da Banha, continuou os estudos num colégio pago, entre meninos da classe média, com uniforme e tudo.
Tomás se sentiu realizado no dia em que viu Rosa Maria chegar com um embrulho. Abriu. Da caixa de papelão saiu um aparelho que Tomás nunca tinha visto. Rosa levou o misterioso engenho ao quarto, abaixou-se, ligou o fio na tomada. Uma luzinha se acendeu no mostrador, apareceram números. Tomás descobriu que era um relógio, desses sem ponteiro, que marcam as horas com números. Mais admirado ficou quando Rosa ligou um botão e do aparelho saiu um som aveludado.
- É FM, pai! E serve como despertador. Relógio digital. Todo mundo tem.
Mais do que um luxo, era um milagre. Tomás passou a mão pelo relógio, "inventam cada uma!", e gostou de tudo. Inclusive da cor: vermelho-sangue.


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