|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O relógio digital
Porteiro do Tribunal de
Justiça, Tomás Antônio da
Silva teve um infarto aos 45 anos,
passou um mês no hospital do
Ipase, aconselhado por um desembargador que desejava abrir
vaga para nomear um afilhado, e
aceitou se aposentar por invalidez. Ganharia mais 20% do salário, ficaria em casa, cuidando da
saúde.
Tomás topou a idéia. Em cinco
anos, a inflação comeu-lhe o ordenado. Depois de pagar o aluguel da casa que entrara em decomposição, com paredes infiltradas e encardidas, o que restava do
salário não dava para uma semana de almoço e jantar todos os
dias. Tirou a filha mais velha, Rosa Maria, do colégio. Ela precisava trabalhar para ajudar nas despesas gerais. O outro filho, Almir,
com dez anos, também deixaria
os estudos, fazia o primário numa
escola pública. Mais tarde, também entraria com sua cota de trabalho.
Aos 50 anos, Tomás assumira a
pobreza na qual vivera e, agora,
sua única preocupação era não
descer à miséria total. Felizmente,
havia Rosa Maria, que terminara
o ginásio. Ela arranjaria um emprego e poderia colaborar. Sentia-se uma ruína.
No dia em que Rosa Maria comunicou que tinha arranjado
emprego, Tomás não gostou. Recepcionista não era bem o que ele
pretendera para a filha.
- E o salário?
- O mínimo. Depois aumentam. Foi o que disseram.
- Sempre dizem isso.
- Foi o que pintou, pai.
Tomás ia comentar qualquer
coisa, mas preferiu calar. No primeiro mês, Rosa Maria colaborou
nas despesas com pouco, mas
agora gastava com condução,
lanche, tudo custava dinheiro. Ele
sentia vergonha em abordar o assunto com a filha. Que desse o que
desse. "E dará cada vez menos",
profetizou dona Ana, que conhecia a filha.
Tomás concentrou-se em outra
idéia: mais dia menos dia, Rosa se
casaria. Tivera namorados circunstanciais, rapazes do subúrbio, bancários, comerciários de
Madureira ou de Campo Grande.
Não sentia a possibilidade de um
futuro radioso para a filha, mas
não se desesperava.
Até que se desesperou de vez, teve um troço novamente no coração que quase o matou. Rosa demorara a chegar. Ninguém lhe
pedia satisfações, mas também
não era normal uma moça de 20
anos chegar em casa muito depois
da meia-noite.
- Alguma coisa, filha? Estava
preocupado.
Dona Ana foi mais rápida:
- Arranjou namorado?
Rosa examinou o pai. O pijama
ralo e vagabundo de Tomás cheirava à pobreza, ao início da miséria que rondava a casa.
- Não. Arranjei um amante...
um homem casado... Ele gosta de
mim.
- Mas... você gosta dele?
- É um homem bom. Muito
bom mesmo.
- Mas é casado!, rugiu Tomás.
- Ele está pensando que você é...
- Cala a boca, Tomás! -gritou dona Ana-, Rosa sabe o que
faz!
- Não estou me vendendo, pai.
Lobianco é um jornalista, falou
francamente comigo. Já tínhamos
saído outras vezes... hoje decidimos... ele pediu que me mudasse
para mais perto... acha Quintino
longe...
- Ele levou você para um hotel?
Tomás queria saber tudo, com
uma curiosidade mórbida, devastadora.
- Hoje não foi a primeira vez.
Apenas... parece que ele está mesmo gostando de mim... não pode
nem quer se separar da esposa,
tem uma filha da minha idade...
- Um velho! -berrou o pai.
- Ele tem a sua idade, pai. Mas
parece que podia ser seu filho.
Dona Ana resumiu a conversa
de forma fulminante:
- Rico não fica velho, Tomás!
Só a gente.
Rosa percebeu que ofendera o
pai. Tentou consertar. Tomás começou a sentir sufocações, levou a
mão ao peito, desabou sobre a cama, arfando. Chamaram a ambulância.
Dois meses depois, Tomás foi
com dona Ana ver o apartamento
que Lobianco alugara para eles:
uma sala com janelas dando para
o Sumaré, dois quartos razoáveis,
banheiro e cozinha, condução
farta, na porta.
E Lobianco, de quem Tomás
passara a ler sem entender as crônicas internacionais, fora generoso com Almir. Em vez de se empregar nas Casas da Banha, continuou os estudos num colégio pago, entre meninos da classe média, com uniforme e tudo.
Tomás se sentiu realizado no
dia em que viu Rosa Maria chegar com um embrulho. Abriu. Da
caixa de papelão saiu um aparelho que Tomás nunca tinha visto.
Rosa levou o misterioso engenho
ao quarto, abaixou-se, ligou o fio
na tomada. Uma luzinha se acendeu no mostrador, apareceram
números. Tomás descobriu que
era um relógio, desses sem ponteiro, que marcam as horas com números. Mais admirado ficou
quando Rosa ligou um botão e do
aparelho saiu um som aveludado.
- É FM, pai! E serve como despertador. Relógio digital. Todo
mundo tem.
Mais do que um luxo, era um
milagre. Tomás passou a mão pelo relógio, "inventam cada uma!",
e gostou de tudo. Inclusive da cor:
vermelho-sangue.
Texto Anterior: Leela Próximo Texto: Panorâmica - Evento: Samir Yazbek e Marcelo Leite dividem debate Índice
|