São Paulo, terça-feira, 26 de dezembro de 2000

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Projeto de pesquisa dos escritos do neoconcretista tornará disponíveis obras na Internet

Manuscritos decifram o universo de Hélio Oiticica



Site terá textos em que o artista discorre sobre seu processo artístico e seus contemporâneos

Cleo Velleda/Folha Imagem
A curadora e crítica de arte Lisette Lagnado (ao fundo), que coordena a catalogação dos manuscritos de Oiticica com Cave Alves (à dir.)


JULIANA MONACHESI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que invenções e delírios reservaria Hélio Oiticica (1937-80) para o mundo virtual se tivesse vivido a era da Internet? Esse nome essencial da história da arte brasileira, que libertou cores e formas do suporte tradicional da pintura, levando-as ao espaço, por meio dos "relevos espaciais" e de seus famosos "parangolés", também teorizou muito sobre sua obra.


Os escritos do artista estão sendo catalogados em um projeto de pesquisa coordenado pela curadora e crítica de arte Lisette Lagnado e desenvolvido em uma parceria entre o Instituto Itaú Cultural e o Projeto Hélio Oiticica. Em entrevista à Folha, Lagnado explicou a pesquisa, cujo resultado estará no ar em 2002, e desvendou um pouco da teoria que o artista registrou em cerca de 2.000 textos.

Folha - Esse projeto de pesquisa envolve as obras de Oiticica ou apenas seus escritos?
Lisette Lagnado -
O Projeto Hélio Oiticica já tem um esforço grande de sistematização da obra. Acho que o grande trabalho de divulgação já foi feito, o que culminou com a exposição do Jeu de Paume, em 92. O que foi oferecido para o Itaú são os arquivos do Hélio, que têm notas de trabalho, cartas e livros anotados, que são cadernos em que ele escrevia uma série de coisas, tanto do trabalho como da própria vida, fichava livros que ele lia etc..
Esse material tem uma vida útil curta, e existe uma demanda cada vez maior de pesquisadores para manipular isso, desde estudantes que querem entrar em contato com os escritos até curadores internacionais que vão fazer exposições e precisam conhecer o universo do Hélio. A idéia era promover uma conservação disso, uma higienização mínima desse material, catalogar e tornar disponível essa obra via Internet.
Mas o que nós fizemos foi um primeiro tombamento, um inventário, é ver tudo o que tem, é ler tudo, absolutamente tudo.

Folha - Quando você diz "ler tudo", estamos falando em que volume de coisas?
Lagnado -
A gente tem entre 1.500 e 2.000 documentos, mas depende do critério. Um fichário é um documento, mas dentro dele há textos escritos em diferentes dias sobre diferentes assuntos, então a gente foi fatiando um fichário em vários documentos.
Fui percebendo que o Hélio tinha uma maneira de trabalhar que é bem curiosa: ele fazia muitas cópias das coisas que ele escrevia. Por exemplo, na época se usava muito o carbono, então tem alguns textos com várias cópias. Você pode tratar tudo como original, só que um carbono é uma cópia. Mas é um original para a gente também.
Outra coisa, que se chama "crítica genética", é você ver qual o andamento do texto nas suas várias etapas de elaboração. Então, um texto podia começar assim (mostra um pequeno pedaço de papel), de repente ele tinha uma idéia e anotava no papel que tinha à mão, depois podia passar para uma folha maior ou podia passar para um caderno, então esse texto incorpora novos parágrafos e depois era datilografado.

Folha - E qual é basicamente o conteúdo desses escritos?
Lagnado -
O que há de fabuloso aqui é que a gente entra em contato com um artista que não só escrevia teoricamente sobre o processo artístico dele, como também sobre a história da arte, sobre seus contemporâneos, artistas como Lygia Pape, Antônio Manuel e Amilcar de Castro.
Tem muitos textos sobre músicos, sobre toda essa época dos anos 60 que ele acompanhou, tem textos sobre Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Ben, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Jimi Hendrix, Bob Dylan. O que é fabuloso é você entrar em contato com um artista que pensou uma época.

Folha - O que ele escreveu sobre a Lygia Clark traz novidades em relação à forma como é vista a relação entre os dois?
Lagnado -
No caso da Lygia, não. O que pode mudar é que a gente tem uma história construída do que foi a relação do Hélio com a Lygia Clark, como se fosse a única relação de respeito profissional que existisse, e não é assim. O Hélio foi generoso com muitos outros artistas que hoje têm presença menor na historiografia.
Para mim, a novidade foi ver a generosidade que o Hélio teve com artistas ascendentes. Ele mandava cartas para revistas em que ia sair um artigo dele, pedindo para escolherem fotos que enfocassem a presença de um usuário de um parangolé. Não é tão claustrofóbico assim: Lygia e Hélio. A gente rastreia pelas agendas a presença de um Tunga, de um Antônio Manuel, Barrio, Cildo Meireles, Carlos Vergara.

Folha - Como os escritos poderão ser pesquisados na Internet?
Lagnado -
Cada documento passou a ter uma ficha, com campos que especificam desde o tipo de papel usado até o conteúdo do texto. Além das fichas, o site vai ter um sistema de navegação com imagens e explicações, então eu estou fazendo uma espécie de vocabulário, ou de léxico, com todas as palavras que o Hélio criou ou termos existentes a que ele atribuiu outro sentido.
Se você entra, por exemplo, em "acontecimento poético urbano", vai ter uma definição e um link. Isso foi fundamental, é por isso que o meio de navegação vai ser muito bom, porque o Hélio não pensou uma coisa linear, as coisas entravam e eram encapsuladas umas nas outras. Você não pode pensar esse "acontecimento poético urbano", que é de 79, sem entender qual era a noção dele de parangolé e parangolé coletivo.
Diferentemente de um livro, no computador você tem já a possibilidade de compreender como um termo se relaciona a outro. Eu acho que o Hélio se presta muito bem para a navegação.

Folha - Na criação desses verbetes, você se vale só desse material ou da teoria crítica já desenvolvida sobre o trabalho dele?
Lagnado -
Não, por enquanto não. Na verdade é quase um Hélio por Hélio. Seria HO por HO.
Porque o que é fabuloso no Hélio é que ele pensou a trajetória toda dele do começo até o final, então ele lança o parangolé, que em 64 tem uma definição, e, em 67, por exemplo, ele incorpora a noção do coletivo e da participação, então o parangolé passa a ser uma criação do povo, ele quer que as pessoas construam as roupas, os estandartes, as capas. Então essa noção de participação vai crescendo, e, se você for ver "Mitos Vadios" já em 1979, as últimas coisas dele são uma noção alargada ou ampliada do parangolé, que é um desdobramento do que ele já vinha pensando, que no começo era simplesmente romper com o quadro, com a estrutura da parede, ir para o espaço, quer dizer, essa ruptura neoconcreta.

Folha - O que vai acontecer depois com os documentos?
Lagnado -
Todo esse material vai ser acondicionado em pastas de pH neutro, não vamos em princípio alterar a ordem em que isso foi encontrado, quer dizer, é um trabalho de tombamento, de inventário, de conservação e de higienização. Só que, em vez de estar com essas estruturas metálicas precárias, a gente vai devolver isso para o Projeto HO dessa maneira.

Folha - E todos os documentos vão estar disponíveis?
Lagnado -
O que diz respeito à obra sim. Mas todo ser humano tem uma parte que é particular, e aqui está tudo misturado. A gente tem correspondência, diários que contêm pensamento sobre arte e coisas pessoais. Para o pesquisador, o que interessa para compreender o percurso do Hélio vai estar à disposição.


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