São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 2004

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Um homem e uma mulher

Ator mais próximo de Bergman, o sueco Erland Josephson fala sobre a relação com o cineasta

ANTOINE JACOB
DO "LE MONDE", EM ESTOCOLMO

Aos 86 anos, Ingmar Bergman tornou-se um cineasta mais calmo, menos tenso. E ainda tem planos na cabeça. Quem conta é o ator Erland Josephson, que atuou em mais de 15 longas de Bergman, incluindo o mais recente, "Sarabanda", exibido na última Mostra de Cinema de SP. O filme retoma os personagens de "Cenas de um Casamento" (1973).
A seguir, trechos da entrevista.
 

Pergunta - Como surgiu a idéia de fazer "Sarabanda"?
Erland Josephson -
Começou como uma espécie de brincadeira entre Ingmar, Liv (Ullmann) e eu, especulando sobre o que poderia ter acontecido com Johan e Marianne, os personagens de "Cenas de um Casamento". Um dia, um de nós -gosto de acreditar que fui eu- propôs, de brincadeira, que fizéssemos um filme sobre a vida 30 anos mais tarde. Então nos demos conta de que nós três estávamos com a mesma idéia na cabeça. Mais tarde, Ingmar disse que não, esse filme não tem nada a ver com "Cenas de um Casamento" -mas é evidente que tem, sim. Se não tivesse, por que dar aos personagens os nomes de Johan e Marianne? Eles carregam na carne a experiência do que lhes aconteceu 30 anos antes.

Pergunta - Como era o ambiente durante as filmagens?
Josephson -
Algumas cenas eram carregadas de emoções fortes. É o caso da cena final, na qual Johan entra no quarto de Marianne. É um momento de nudez profunda, em todos os sentidos da palavra. A cena trata do tema muito bergmaniano da solidão, do medo de estar só, da impressão de sentir sua existência ameaçada.
De modo geral, tivemos grande prazer em filmar. Ingmar é alguém com quem é muito divertido trabalhar, apesar de ele exigir muito das pessoas. Além disso, nós nos conhecemos tão bem, ele e eu, que compreendemos o menor gesto um do outro. Não é preciso analisar ou explicar as coisas.
Pelo fato de certas cenas remeterem a nossas vivências pessoais, era inevitável que velhos conflitos voltassem à tona de vez em quando. Ingmar e Liv viveram juntos por vários anos, e nem tudo entre eles foi resolvido. Mas é salutar querer trazer as coisas à tona, em vez de fingir ignorar as tensões.

Pergunta - Bergman mudou em sua maneira de dirigir os atores?
Josephson -
Não, não acho. É verdade que ele se tornou mais aberto, mais calmo e menos tenso, ele grita menos do que antes. Mas em seu tom, em sua maneira de analisar e de criar um clima no set, ele não mudou nada. Às vezes ele também se deixa irritar pelas mudanças tecnológicas recentes. Hoje existem novos equipamentos que ele não domina da mesma maneira que os antigos.

Pergunta - Como se passou seu reencontro com Liv Ullmann?
Josephson -
Liv e eu nos conhecemos bem, há muito tempo. Mas tenho que admitir que tivemos um pouco de dificuldade no primeiro encontro de preparação da filmagem. Aliás, é como o que acontece no início do filme, quando Marianne chega à casa de Johan. Nós nos vimos lá, na obrigação de nos falar, de nos aproximarmos um do outro, sem consegui-lo realmente. Esse, aliás, é outro tema de Bergman.

Pergunta - Era importante para Bergman voltar ao tema das relações entre pai e filho?
Josephson -
Acho que Ingmar não usaria o termo "importante" -é pesado demais. Mas o tema do pai que trata mal a seu filho é algo que o toca pessoalmente. O pai em "Sarabanda" não deu certo em nada em sua vida, é um perdido, e esse fracasso o tornou mordaz. Nisso ele difere de outros pais encontrados em outros filmes de Ingmar, se bem que seja tão dominador e sem escrúpulos quanto eles. O que é doloroso, com Johan, é que ele não consegue amar seu filho.

Pergunta - "Sarabanda" evoca a morte, o medo de morrer ou a espera...
Josephson -
Em nossa idade, é natural pensar na morte. Ingmar tem uma atitude muito ambígua com relação ao desejo de morrer, à vontade de viver. Mas não sabemos se, no filme, ele evoca sua própria relação com a morte. O que é certo é que ele fala muito de sua história pessoal quando o filho, Henrik, é dominado pelo sentimento de abandono, após a morte de sua mulher. (O filme é dedicado a Ingrid, a última mulher do diretor, morta em 1995.)

Pergunta - Você tem o costume de falar da morte com Bergman?
Josephson -
Sim, às vezes o fazemos. Nem sempre temos as mesmas opiniões. Ingmar gostaria muito de acreditar em outra vida após esta. Quanto a mim, isso não me interessa tanto assim. Desde 1974 ou 1976, não sei mais, nós nos falamos ao telefone quase todos os sábados. Os assuntos variam; muitas vezes são de ordem muito pessoal. Às vezes não temos grande coisa a nos dizer, mas sempre podemos conversar. Compartilhamos tantas referências comuns, trabalhamos juntos tantas vezes...

Pergunta - De que vocês conversaram no sábado passado?
Josephson -
Foi algo muito particular: ele estava com dor de estômago! Aprendemos com Strindberg a misturar trivialidade e grandeza, a merda e os céus. Strindberg significa muitas coisas para Ingmar.

Pergunta - Como vai indo Bergman em sua casa na ilha de Faaro?
Josephson -
Ele acha muito de seu agrado viver no isolamento. Mas se entedia tremendamente sem seus atores! Isto dito, ele não quer começar mais nada -pelo menos é o que afirma. Acredito que, desta vez, ele pensa realmente assim. Mesmo assim, nada impede que ele mude de opinião. Ele já o fez no passado. Ele precisaria encontrar uma forma mais fácil de se expressar -um filme é algo tão pesado! Acho que poderia ser uma espécie de teatro de câmera, com alguns poucos atores. Bergman ainda tem algumas histórias a contar. Ele me falou um pouco disso. Não posso dizer mais.


Tradução de Clara Allain


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