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NELSON ASCHER
A Canção dos Partisans Franceses
O povo unido, como se sabe,
jamais será vencido, exceto,
é claro, quando for ou tenha sido.
Ademais, a que povo exatamente
se refere o slogan famoso? Ao povo entendido como toda a população de um país, ou seja, o povo
brasileiro, islandês, marroquino?
Ou ao povo "povão", isto é, "les
damnés de la Terre", os desgraçados, os miseráveis do planeta? Ele
conclama compatriotas e concidadãos ou camaradas e companheiros?
Tanto faz, pois é o contexto, o
uso e a situação que preenchem
de sentido essa frase vazia. Palavras de ordem não são filosofia,
nem é sua função formular verdades complexas e profundas.
Elas são, isto sim, longas interjeições hiperbólicas ou hipertrofiadas cujo objetivo consiste em induzir à ação. Hinos nacionais,
partidários ou mesmo de times
futebolísticos desempenham papel semelhante. São, portanto, os
resultados de uma estética utilitária, assim como jingles comerciais
ou de campanha política. E não é
à toa que avaliar seus méritos formais independentemente da causa a que servem está entre as tarefas mais difíceis que existem.
Por sorte, a "Canção dos Partisans", que se tornou o hino da resistência francesa, associa-se a
uma luta heróica e justa. Aliás,
caso consideremos o quanto se
exagerou a dimensão da guerrilha antinazista na França ocupada, à medida que se minimizava
programaticamente a muito mais
ampla, geral, quase irrestrita colaboração local com os alemães,
pode-se talvez constatar que a
canção transcendeu, à sua maneira, a causa que pretendia promover.
O hino foi composto entre 1943-44, em Londres, por três membros
destacados da França Livre, do
movimento que, fundando por
Charles de Gaulle, oferecia-se como a opção combativa ao governo francês que, rendendo-se à
Alemanha em 1940, estabelecera
sua capital administrativa na cidade de Vichy. Cada qual dos responsáveis pela canção era uma
personalidade digna de nota.
Nascida em São Petersburgo no
ano da Revolução Russa (1917),
Anna Marly, a compositora da
melodia, era uma bailarina e
cantora que, tendo de deixar seu
país natal, precisou, com a guerra, abandonar também o de adoção. Foi só depois de chegar a
Londres e converter-se na grande
intérprete da resistência, que ela
se celebrizou.
Quanto aos letristas, sua trajetória foi ainda mais singular. Joseph Kessel (1898-1979) nasceu na
Argentina, filho de judeus fugidos
do império czarista. Mudou-se
adolescente para a França, lutou
na Primeira Guerra e conquistou
a fama como romancista. Entre
seus romances mais conhecidos
está "A Bela da Tarde", magnificamente filmado pelo espanhol
Luis Buñuel. E o outro letrista era
seu sobrinho, o escritor francês
Maurice Druon, nascido em 1918,
ainda vivo, autor do ciclo romanesco "Os Reis Malditos", ganhador do Prêmio Goncourt e membro da Academia Francesa. Um
detalhe interessante o liga ao Brasil: ele é descendente direto do
maranhense Manuel Odorico
Mendes, nosso maior tradutor oitocentista dos clássicos greco-romanos, de Homero e Virgílio.
O hino, apresentado aqui numa
tradução que, mantendo seu ritmo, rimas internas e finais, é,
quem sabe, cantável, já foi interpretado pelas mais diversas vozes
masculinas e femininas. Muitas
merecem ser ouvidas e outras
tantas comparadas, mas se for necessário escolher uma única interpretação, fico com a primeira que
ouvi, a de Yves Montand. Que eu
saiba, ele gravou a canção em pelo menos duas versões, uma parcialmente recitada e a outra, minha favorita, cantada do começo
ao fim. "Le Chant des Partisans"
nos ajuda, se mais nada, a lembrar que houve tempos, nem tão
remotos assim, em que o inimigo
era chamado de inimigo e a vitória, vista como pré-condição da
paz.
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