São Paulo, segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

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NELSON ASCHER

A Canção dos Partisans Franceses

O povo unido, como se sabe, jamais será vencido, exceto, é claro, quando for ou tenha sido. Ademais, a que povo exatamente se refere o slogan famoso? Ao povo entendido como toda a população de um país, ou seja, o povo brasileiro, islandês, marroquino? Ou ao povo "povão", isto é, "les damnés de la Terre", os desgraçados, os miseráveis do planeta? Ele conclama compatriotas e concidadãos ou camaradas e companheiros?
Tanto faz, pois é o contexto, o uso e a situação que preenchem de sentido essa frase vazia. Palavras de ordem não são filosofia, nem é sua função formular verdades complexas e profundas. Elas são, isto sim, longas interjeições hiperbólicas ou hipertrofiadas cujo objetivo consiste em induzir à ação. Hinos nacionais, partidários ou mesmo de times futebolísticos desempenham papel semelhante. São, portanto, os resultados de uma estética utilitária, assim como jingles comerciais ou de campanha política. E não é à toa que avaliar seus méritos formais independentemente da causa a que servem está entre as tarefas mais difíceis que existem.
Por sorte, a "Canção dos Partisans", que se tornou o hino da resistência francesa, associa-se a uma luta heróica e justa. Aliás, caso consideremos o quanto se exagerou a dimensão da guerrilha antinazista na França ocupada, à medida que se minimizava programaticamente a muito mais ampla, geral, quase irrestrita colaboração local com os alemães, pode-se talvez constatar que a canção transcendeu, à sua maneira, a causa que pretendia promover.
O hino foi composto entre 1943-44, em Londres, por três membros destacados da França Livre, do movimento que, fundando por Charles de Gaulle, oferecia-se como a opção combativa ao governo francês que, rendendo-se à Alemanha em 1940, estabelecera sua capital administrativa na cidade de Vichy. Cada qual dos responsáveis pela canção era uma personalidade digna de nota.
Nascida em São Petersburgo no ano da Revolução Russa (1917), Anna Marly, a compositora da melodia, era uma bailarina e cantora que, tendo de deixar seu país natal, precisou, com a guerra, abandonar também o de adoção. Foi só depois de chegar a Londres e converter-se na grande intérprete da resistência, que ela se celebrizou.
Quanto aos letristas, sua trajetória foi ainda mais singular. Joseph Kessel (1898-1979) nasceu na Argentina, filho de judeus fugidos do império czarista. Mudou-se adolescente para a França, lutou na Primeira Guerra e conquistou a fama como romancista. Entre seus romances mais conhecidos está "A Bela da Tarde", magnificamente filmado pelo espanhol Luis Buñuel. E o outro letrista era seu sobrinho, o escritor francês Maurice Druon, nascido em 1918, ainda vivo, autor do ciclo romanesco "Os Reis Malditos", ganhador do Prêmio Goncourt e membro da Academia Francesa. Um detalhe interessante o liga ao Brasil: ele é descendente direto do maranhense Manuel Odorico Mendes, nosso maior tradutor oitocentista dos clássicos greco-romanos, de Homero e Virgílio.
O hino, apresentado aqui numa tradução que, mantendo seu ritmo, rimas internas e finais, é, quem sabe, cantável, já foi interpretado pelas mais diversas vozes masculinas e femininas. Muitas merecem ser ouvidas e outras tantas comparadas, mas se for necessário escolher uma única interpretação, fico com a primeira que ouvi, a de Yves Montand. Que eu saiba, ele gravou a canção em pelo menos duas versões, uma parcialmente recitada e a outra, minha favorita, cantada do começo ao fim. "Le Chant des Partisans" nos ajuda, se mais nada, a lembrar que houve tempos, nem tão remotos assim, em que o inimigo era chamado de inimigo e a vitória, vista como pré-condição da paz.


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