São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 2003 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Racionais aprendem a sambar
PEDRO ALEXANDRE SANCHES DA REPORTAGEM LOCAL Ainda sob o calor do assassinato do rapper Sabotage, um momento histórico vai ao ar amanhã à noite na televisão brasileira. Sempre determinados a desprezar/ combater a grande mídia, os Racionais MC's fazem concessão inédita à TV Cultura e ao diretor, produtor e homem de música Fernando Faro. Protagonizam, a partir das 22h30, a edição desta terça de seu programa musical "Ensaio", bunker da tradição musical brasileira que agora legitima o rap como um de seus subgêneros. A Folha testemunhou a gravação do "Ensaio" a convite da produção do programa e sem se identificar. A gravação aconteceu em 10 de dezembro passado, e foi quase o tempo todo tenso o encontro entre Faro de um lado e Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay do outro. Pré-entrevistando os músicos no bastidor do programa, Faro já deu o norte do que seria o programa. "Vocês conhecem Wilson Batista?", perguntou de início. "A gente não conhece", respondeu um deles. "É samba-rock? A gente conhece Jorge Ben, Bebeto, Luís Vagner", disse outro. Faro passou a exercer doce pressão sobre os rappers, insistindo em citar versos do sambista carioca que viveu entre 1913 e 1968 e deixou crônicas clássicas da vida no morro como "Preconceito", "Nega Luzia" e "Mulato Calado". Faro queria demonstrar as semelhanças de vivência entre a violência ainda suave das canções de Batista e a ferocidade crua retratada décadas depois pelos Racionais. Queria constatar um fio de ligação entre o rap e a tradição. Constatou que ele não existe, pelo menos de modo consciente. "Nossos pais não ouviam, não chegou na gente isso. Só pegamos a partir dos anos 70", afirmou KL Jay. Constrangido, Mano Brown explicou que não se ouve samba nem qualquer música brasileira na "quebrada". Disse que cresceu ouvindo cantores americanos no rádio e influenciado pela cultura dos bailes funk de periferia. Ainda assim, contou a Faro que seus filhos se chamam Jorge e Domênica, em homenagem a Jorge Ben e a sua mulher. Instigado por Faro, elogiou o jovem carioca Seu Jorge, "bom demais". Os Racionais lembraram que conheceram Faro num churrasco oferecido na casa do sambista paulista Jair Rodrigues. O encontro aconteceu há mais de dois anos, e desde então a equipe do "Ensaio" negociava o ingresso dos Racionais em sua galeria. Da comunidade hip hop, apenas Rappin" Hood já havia frequentado o programa anteriormente. Iniciada a gravação, Mano Brown liderava a tensão de quem se sente em território estranho, talvez inimigo. Os membros da banda erravam algumas vezes as entradas da primeira das quatro músicas que cantariam. A cada erro, começavam tudo de novo. Respondendo às perguntas em off de Faro, a desconfiança respeitosa se mantinha. KL Jay afirmou que estar naquele programa era um momento feliz em sua vida. E, sem querer, o samba voltava à pauta. "Eu fazia samba no fundo do ônibus, com repique de mão", contou Brown, lembrando que na infância ouvia Benito di Paula, Agepê, Luiz Ayrão. Cantarolou Roberto Ribeiro: "Todo menino é um rei/ eu também já fui rei...". Evocou o funk à brasileira, contando que o nome do grupo veio inspirado na controversa fase "Racional" (74-75) de Tim Maia. "Hoje eu colocaria Emocionais, de Racionais a gente não tem nada. Para ser racional o cara tem que ser mau", disse Brown. Ice Blue voltou ao samba: "Até fizemos samba uma época. A gente cantava as músicas conhecidas da época, de Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Leci Brandão, Beth Carvalho. Considero que a rapaziada fazia samba de raiz, uns primos tinham até um conjunto". Lembrando que cresceu vendo a mãe ouvir Roberto Carlos, KL Jay evocou o momento em que viu o DJ do rapper pioneiro Kool Moe Dee tocando em São Paulo: "O DJ fazia scratches com "Você Mentiu", do Tim Maia. Falei "nossa, eu quero ser isso'". Num outro momento, Mano Brown fez alusão involuntária ao samba, ao falar de polícia e de violência: "Quem apanha na cara é pandeiro". Fechava-se o círculo de associação que os rappers de Capão Redondo se acostumaram a fazer entre o samba e o opressor, entre a negação do abandono e a negação do próprio Brasil. Mas ainda havia mais samba e bossa para os bastidores. Faro contava que João Gilberto andou dizendo que rap parece embolada. "Ele falou isso agora?", surpreendeu-se Brown. "Ele é considerado um gênio, né?" Moreira da Silva: "É samba de breque, acho que é o que mais se aproxima do rap". E Wilson Batista, de novo. "Um dia a gente vai conhecer", prometeu Brown a Faro. ENSAIO - Programa com o grupo de rap Racionais MC's. Quando: amanhã, às 22h30, na TV Cultura. Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Música: Midem reforça luta dos independentes por espaço Índice |
|