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Crítica/relato de viagem
Canetti faz literatura em sua narrativa sobre Marrakech
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Trata-se do relato de
uma viagem ao Marrocos, mas a impressão
que se tem é que poderia ser do
mesmo modo um guia turístico
dos recantos amarelados da
Lua ou dos pontos mais interessantes de um formigueiro
esquecido no meio do jardim
que o resultado seria igualmente estupendo. Por mais fascinante que seja o lugar descrito,
o que conta aqui é a descrição.
É uma experiência similar à
que Elias Canetti (1905-1994)
narra em um trecho deste "As
Vozes de Marrakech": "Suas
palavras vêm de longe e pairam
mais tempo no ar do que as do
homem comum. Eu não entendia nada e mesmo assim ficava
preso a suas vozes". Para alguns, ela se chama literatura.
O livro resulta de uma estada
de três semanas no país com
uma equipe de cineastas ingleses. Elias Canetti não se preparou para o "passeio": não conhecia as línguas locais, não estudou guias, não quis aprender
costumes.
Resolveu apenas andar pela
cidade, observar, conversar se
fosse possível e, posteriormente, contar o que viu, seja o sacrifício de camelos ou a sexualidade notável de um jumento decrépito, seja o estranho costume de um homem cego de mastigar longamente as moedas
que recebia de esmola ou as histórias dos vários membros da
família Dahan, que, por uma série de circunstâncias, ele terminou conhecendo.
São casos simples, narrados
em sua maioria em cinco ou
seis páginas, nos quais diferenças nem de longe constituem
um problema, e repetições provocam não o tédio, mas a desautomatização dos olhos e ouvidos ("começam com Deus,
terminam com Deus, repetem
seu nome 10 mil vezes por dia
[...]. São arabescos acústicos em
torno do nome de Alá, bem
mais impressionantes que os
arabescos visuais"). Ainda que
essa esteja longe de ser a intenção do livro, a verdade é que até
seria possível extrair dele quase
uma ética do viajante perfeito.
Notável em vários gêneros
Prêmio Nobel de Literatura
de 1981, o búlgaro é de fato um
autor especial. Como escreveu
nesta Ilustrada há alguns anos
Nelson Ascher, ele compunha,
"sem tentativas e erros", algo
notável em um gênero e então
mudava para outro, numa espécie de pesquisa interminável
sobre o limite (a "consciência")
das palavras.
Parte importante dessas experiências já pode ser lida em
português: o romance (a sua
obra máxima, "Auto-de-Fé",
Cosacnaify), os ensaios, os volumes autobiográficos e o tratado ("Massa e Poder") de difícil classificação, editados pela
Companhia das Letras, as peças (uma seleção em "O Teatro
Terrível", ed. Perspectiva). É a
esse conjunto tão distinto e
coerente que se junta agora este relato de viagem "As Vozes
de Marrakech".
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
AS VOZES DE MARRAKECH
Autor: Elias Canetti
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 39 (112 págs.)
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