São Paulo, quarta, 27 de janeiro de 1999

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DISCO LANÇAMENTO
Enredos jogam "clarão de luz' no "adeus à carne'

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Diz a etimologia popular que "Carnaval" vem do latim "carne vale": "carne, adeus!" Do Dia de Reis até a Quarta-Feira de Cinzas, a carne tem direito de se despedir, antes que comecem os 40 dias de recato da Quaresma.
Cada um se despede o quanto e como pode. A maioria prefere o ritmo do samba; e os sambas de enredo acrescentam o desatino das palavras à loucura do corpo.
Nostradamus, Bill Gates, Elymar, o rei Dom João, Paulo Freire, Jacques Cousteau: esses são só alguns dos personagens homenageados nas letras dos sambas das escolas paulistas para o próximo Carnaval, contidos no CD "Escolas de Samba de São Paulo - Carnaval 99 -°Sambas de Enredo".
A pedagogia do oprimido e o sebastianismo, a felicidade na Bahia, a fraternidade do Mercosul e a nostalgia da Barra Funda, alvoreceres e apocalipses e viradas do milênio fazem da sequência de faixas espécie de "maravilhoso oceano de paixão", como canta a Águia de Ouro, em palavras que definem o tom do maravilhamento.
Pobre gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual, já dizia Joãosinho Trinta. Há uma versão literária do mesmo paradoxo. Quem escreve versos simples é Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto; poesia popular é cheia de vocabulário raro, metáforas carregadas e inversões gramaticais.
A Nenê da Vila Matilde vai "descortinando o manto azul do céu", "um clarão reluz" para a Leandro de Itaquera e "surge um clarão" para a Vai-Vai, para ficar só em três imagens do céu. Que essa linguagem se combine com "ô, ô, Bolinha", ou "alô, alô, minha gente", ou com os acarajés e vatapás e ziriguiduns e tum-tum-tuns de praxe só não faz sentido para quem não tem idéia do que é o Carnaval.
Se alguma coisa causa surpresa é a falta de surpresa dos sambas de enredo, no que diz respeito ao samba e não ao enredo. As faixas do disco se sucedem como uma dúzia de sambas, doze versões de uma matriz. Há os que modulam para menor; e há os que não modulam. Há os de melodia mais caudalosa e os de mais angulosa.
Mas as diferenças são de contorno e não de essência. Todo o esforço de renovação fica nos ombros dos letristas e dos carnavalescos. Os compositores se contentam em fazer mais um samba, tão natural e igual aos outros como um copo d'água.
Mesmo assim, deve-se dizer que não há, entre os iguais, nenhum mais igual dos que os outros, nenhum que se destaque com aquela grandeza de clássicos como "Foi um Rio que Passou em Minha Vida", de Paulinho da Viola, ou (para citar outro, mais recente) da homenagem à Mangueira de Chico Buarque e Hermínio Belo de Carvalho.
A gravação não ajuda e algum desconto deve ser dado. Do ponto de vista técnico, o disco soa como o proverbial túmulo do samba paulista, com surdos surdos e caixas com som de caixa.
Aplausos gravados, no início de cada faixa, não contribuem em nada para diminuir a atmosfera de estúdio; aliás, reforçam.
Mas ninguém, afinal, vai comprar um disco desses para sentar na sala e se deliciar com engenhosidades melódicas e inovações da harmonia. Nem para julgar os sambas, que só podem ser julgados na avenida. Vai comprar, então, para quê? Não é, a rigor, para ouvir; nem para dançar.
O disco serve mais como uma lembrança, por antecipação, do Carnaval que vem aí. Um cartão postal sonoro, meio fora de foco. Um aperitivo, ou um suvenir. Quem gosta de samba vai ter mesmo de ir até o Sambódromo para escutar. Carne, adeus! Boa sorte -coragem!- e bom Carnaval.
˛
Disco: Escolas de Samba de São Paulo -°Carnaval 99 - Sambas de Enredo Lançamento: Trama Quanto: R$ 18, em média



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