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DISCO LANÇAMENTO
Enredos jogam "clarão de luz' no "adeus à carne'
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Diz a etimologia popular que
"Carnaval" vem do latim "carne
vale": "carne, adeus!" Do Dia de
Reis até a Quarta-Feira de Cinzas, a
carne tem direito de se despedir,
antes que comecem os 40 dias de
recato da Quaresma.
Cada um se despede o quanto e
como pode. A maioria prefere o
ritmo do samba; e os sambas de
enredo acrescentam o desatino das
palavras à loucura do corpo.
Nostradamus, Bill Gates, Elymar,
o rei Dom João, Paulo Freire, Jacques Cousteau: esses são só alguns
dos personagens homenageados
nas letras dos sambas das escolas
paulistas para o próximo Carnaval, contidos no CD "Escolas de
Samba de São Paulo - Carnaval 99
-°Sambas de Enredo".
A pedagogia do oprimido e o sebastianismo, a felicidade na Bahia,
a fraternidade do Mercosul e a
nostalgia da Barra Funda, alvoreceres e apocalipses e viradas do
milênio fazem da sequência de faixas espécie de "maravilhoso oceano de paixão", como canta a Águia
de Ouro, em palavras que definem
o tom do maravilhamento.
Pobre gosta de luxo; quem gosta
de miséria é intelectual, já dizia
Joãosinho Trinta. Há uma versão
literária do mesmo paradoxo.
Quem escreve versos simples é
Carlos Drummond de Andrade ou
João Cabral de Melo Neto; poesia
popular é cheia de vocabulário raro, metáforas carregadas e inversões gramaticais.
A Nenê da Vila Matilde vai "descortinando o manto azul do céu",
"um clarão reluz" para a Leandro
de Itaquera e "surge um clarão"
para a Vai-Vai, para ficar só em
três imagens do céu. Que essa linguagem se combine com "ô, ô, Bolinha", ou "alô, alô, minha gente",
ou com os acarajés e vatapás e ziriguiduns e tum-tum-tuns de praxe
só não faz sentido para quem não
tem idéia do que é o Carnaval.
Se alguma coisa causa surpresa é
a falta de surpresa dos sambas de
enredo, no que diz respeito ao
samba e não ao enredo. As faixas
do disco se sucedem como uma
dúzia de sambas, doze versões de
uma matriz. Há os que modulam
para menor; e há os que não modulam. Há os de melodia mais caudalosa e os de mais angulosa.
Mas as diferenças são de contorno e não de essência. Todo o esforço de renovação fica nos ombros
dos letristas e dos carnavalescos.
Os compositores se contentam em
fazer mais um samba, tão natural e
igual aos outros como um copo
d'água.
Mesmo assim, deve-se dizer que
não há, entre os iguais, nenhum
mais igual dos que os outros, nenhum que se destaque com aquela
grandeza de clássicos como "Foi
um Rio que Passou em Minha Vida", de Paulinho da Viola, ou (para
citar outro, mais recente) da homenagem à Mangueira de Chico
Buarque e Hermínio Belo de Carvalho.
A gravação não ajuda e algum
desconto deve ser dado. Do ponto
de vista técnico, o disco soa como o
proverbial túmulo do samba paulista, com surdos surdos e caixas
com som de caixa.
Aplausos gravados, no início de
cada faixa, não contribuem em nada para diminuir a atmosfera de
estúdio; aliás, reforçam.
Mas ninguém, afinal, vai comprar um disco desses para sentar
na sala e se deliciar com engenhosidades melódicas e inovações da
harmonia. Nem para julgar os
sambas, que só podem ser julgados
na avenida. Vai comprar, então,
para quê? Não é, a rigor, para ouvir; nem para dançar.
O disco serve mais como uma
lembrança, por antecipação, do
Carnaval que vem aí. Um cartão
postal sonoro, meio fora de foco.
Um aperitivo, ou um suvenir.
Quem gosta de samba vai ter mesmo de ir até o Sambódromo para
escutar. Carne, adeus! Boa sorte
-coragem!- e bom Carnaval.
˛
Disco: Escolas de Samba de São Paulo
-°Carnaval 99 - Sambas de Enredo
Lançamento: Trama
Quanto: R$ 18, em média
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