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São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2003

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A convite da Folha, sobrevivente do massacre do pavilhão nove assiste ao filme "Carandiru"

Amargo regresso

Marlene Bergamo/Divulgação
Sobreviventes do massacre no pátio, em cena do filme



Para o ex-detento André du Rap, longa de Babenco sobre o presídio reacende traumas e é "perturbante"


LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Na pele do preso travesti Lady Di, Rodrigo Santoro, com seios fartos, lentes azuis e batom vermelho, entra na sala do "doutor".
"Quero saber se tenho a doença". O médico prepara a seringa para coletar o sangue. "Quantos parceiros?" "Uns dois mil."
Na poltrona do cinema, André du Rap, 33, não segura a risada. Era a primeira reação do ex-detento ao filme "Carandiru", de Hector Babenco, a que ele assistiu anteontem, a convite da Folha.
Em liberdade desde 2000, André, que foi condenado por homicídio, entrou no complexo penitenciário paulistano em 1992. Foi no dia 2 de outubro, quando ainda "engatinhava" nos códigos da cadeia, que ocorreu a invasão da Polícia Militar ao pavilhão nove e o massacre dos 111 presidiários.
André conhecia quase todos os personagens retratados no longa, uma adaptação do livro "Estação Carandiru", do colunista da Folha Drauzio Varella, que estréia no próximo dia 11 de abril.
Estava lá quando o médico desenvolveu um trabalho de prevenção à Aids (experiência que deu origem à sua obra) e chegou a colaborar, distribuindo preservativos e revistas sobre o assunto.
Assim como a data da entrada na prisão, seu "endereço" no Carandiru não poderia ter sido pior: uma cela no terceiro andar do pavilhão nove.
Por isso, o motivo para rir do trabalho de Babenco começou para ele com o rebolado de Santoro e terminou com o de Rita Cadillac, no papel dela mesma, a musa da Detenção.
Na maior parte dos 146 minutos da projeção, André permaneceu imóvel, sério. Em alguns momentos, balançava a cabeça de um lado para o outro, contrariado.
Na hora da reconstituição do massacre, ele ajeitou o corpo para ver melhor, fixou os olhos na tela, tentou não piscar.
Uma briga boba entre presos origina (no filme, pelo menos) a rebelião. Com um megafone, o diretor (Antonio Grassi) negocia com os rebelados, pendurados às grades das janelas: "Joguem as armas, senão a PM invade".
Facas e paus começam a cair no chão. Neste instante, André balançou a cabeça. "Tudo deve ter sido diferente, ele só vai criticar", imaginou a reportagem, que o acompanhava na sessão.
Quase interminável, a cena do massacre passou. Acabou também o Carandiru, implodido em dezembro de 2002 e, com essas imagens, reais, Babenco encerrou sua obra de R$ 12 mi. Na saída do cinema, a pergunta inevitável: "E aí, André, gostou do filme?"
"A proposta é boa, mas... Aquela história do megafone... Não teve aquilo." E o que mais? "O casamento do travesti, com véu, nunca poderia ter acontecido daquele jeito. No pavilhão nove só tinha dois travestis e eles não ficavam circulando pelos corredores."
Mas são detalhes. E aos poucos foi ficando fácil entender sua reação negativa. "As cenas do massacre são muito reais. [Como um dos personagens] Também deitei entre os corpos, me fingi de morto, para não ser assassinado.".
André conta que quando os policiais começaram a invadir o pavilhão, ele correu para uma cela, com outros cinco detentos. Seu testemunho parece um relato do filme. "Um PM meteu a metralhadora pela janela da porta e matou quatro sem entrar na cela."
A voz de André ganha tom de revolta. "Ele viu que eu estava vivo, apontou a arma para mim, mas as balas tinham acabado. Pisou no meu peito, deu duas coronhadas na minha cabeça e saiu."
Sua versão está em "Sobrevivente André du Rap" (editora Labortexto), que escreveu em parceria com o jornalista Bruno Zeni. "O livro já me fez relembrar dos traumas. Ainda tenho pesadelos com aquele dia. Como acha que me sinto vendo esse filme? É perturbante." Não recomendaria "Carandiru" a nenhum sobrevivente. "O cara ia querer me matar depois". E para quem não estava no presídio, indicaria? "Aí sim."


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