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"CARANDIRU"
As memórias do cárcere de Hector Babenco
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
É brutal a força de "Carandiru". Uma força cinematográfica, que vem da imagem, e
que se faz complementar à força
do livro em que o filme se baseou,
o extraordinário "Estação Carandiru", de Drauzio Varella.
Ao lado dos volumes do colunista da Folha Elio Gaspari sobre
a ditadura militar ("As Ilusões Armadas") e do de Paulo Lins sobre
a vida em meio ao tráfico ("Cidade de Deus"), "Estação Carandiru" é um dos mais importantes
esforços literários para uma compreensão da história atual.
Num trabalho de fôlego mais
modesto do que os de Gaspari e
Lins, mas de resultado não menos
contundente, o médico Drauzio
Varella se fez escritor e recriou as
histórias que ouviu e testemunhou no período em que foi voluntário de um programa de prevenção à Aids no presídio.
O resultado foram pequenas
narrativas incríveis, relatadas
com linguagem objetiva, e o oferecimento de um novo ponto de
vista para o massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos por forças policiais durante
uma rebelião, em 1992.
Nas páginas do livro, as histórias envolvem o leitor. Elas são
quase como se fossem "causos",
até mesmo pelo fato de Drauzio
ter se dado o direito de recorrer ao
álibi da ficção. Mas "Carandiru",
o filme, mantendo o álibi, perde
essa dimensão de quase-mito.
Principalmente para os que leram o livro recentemente, o fim
da projeção de "Carandiru" pode
trazer uma ponta de decepção. No
caminho de um livro para um filme, afinal, há sempre perdas. Mas
a sensação se dissipa quando se
percebe que as imagens de "Carandiru" se recusam a ir embora.
Elas persistem, voltam em ocasiões inesperadas, passam a fazer
parte da memória. Sinal de que o
filme é uma obra em si.
Enquanto o livro tem importância concreta, sem que tenha feito
de Drauzio Varella um artista, o
filme é, inegavelmente, a obra de
um autor, um sujeito (no sentido
amplo) que tem uma história para contar e um ponto de vista sobre ela, identificando-se com a
narrativa. "Carandiru" é um filme
que assume sua parcialidade em
todos os sentidos.
Babenco se enxerga nos párias,
nos rejeitados, nos sobreviventes
e é daí, exclusivamente, que nasce
a possibilidade de (re)existência
desses personagens. É como se ele
fizesse suas "Memórias do Cárcere", sem que precisasse ter estado
preso. O próprio autor já admitiu
que "Carandiru" é a continuidade
(e não a continuação, por favor)
de "Pixote": é como se fosse o retrato do futuro daqueles meninos
abandonados. (E é possível, aliás,
que esteja nesse ponto a origem
do maior problema de "Carandiru": o personagem com menos
credibilidade é o único que não
pertence ao universo da prisão, o
narrador da história, interpretado
por Luiz Carlos Vasconcelos.)
Entre as imagens de "Carandiru" que já podem entrar para uma
antologia do cinema da retomada
estão o show de Rita Cadillac, o jogo de futebol ao som do Hino Nacional e o próprio massacre (além
de imagens documentais que encerram o filme e que não descrevo
aqui para não diminuir seu impacto). Entre as histórias contadas, não há o que se destacar. São
todas fortíssimas. "Carandiru" é,
ainda, uma sucessão de grandes
interpretações, de rostos consagrados ou desconhecidos.
Carandiru
Produção: Brasil, 2003
Direção: Hector Babenco
Com: Luiz Carlos Vasconcelos, Milton
Gonçalves, Rodrigo Santoro
Quando: estréia em 11 de abril
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