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CONTARDO CALLIGARIS
Notas à margem dos primeiros dias de guerra
1) Na véspera da guerra, Michael Moore, o diretor de "Tiros em Columbine" (Oscar de melhor documentário), escreveu numa carta a George Bush: "Dos 535
membros do Congresso apenas
um tem um filho ou uma filha recruta nas Forças Armadas. Se você quer defender a América, mande imediatamente, por favor, suas
filhas gêmeas para o Kuait e deixe
que elas vistam os macacões de
proteção contra as armas químicas. E oxalá cada membro do
Congresso com um filho em idade
idônea também ofereça suas
crianças para o esforço bélico de
hoje. O que você está dizendo?
Você acha que não vai dar? Pois
é, olhe que surpresa, nós também
achamos que não vai dar!".
Michael Moore é um ativista de
esquerda, que se opõe à guerra.
Mas ele não pertence aos salões
acadêmicos e progressistas da Califórnia e da Costa Leste dos EUA.
Fala com a voz dos que têm filhos
no Exército: os trabalhadores manuais, os pequenos comerciantes
e fazendeiros da América profunda.
No segundo dia das hostilidades, escuto Michael Savage, um
radialista de extrema direita,
apaixonadamente favorável à
guerra. Savage, quase lírico, comenta que os rapazes que estão a
caminho de Bagdá aprenderam a
atirar com seu pai ou seu avô, caçando nos bosques e nas planícies
do país. Acrescenta: "Eles estão
acostumados a calçar botas, enquanto, nas areias do Iraque, não
vejo muitos mocassins elegantes...".
A discórdia entre os pacifistas e
os que são favoráveis à guerra
agita as ruas dos EUA. Mas existem outras divisões na sociedade
americana, talvez mais cruciais.
2) A festa da Bolsa, nos anos 90,
foi um desastre para a nação: a
farra do capital financeiro zombava das pequenas classes médias, o dinheiro fácil para os poucos que especulavam transformava os humildes em otários. Durante um tempo, instaurou-se no
país a Lei de Gerson. Sabemos como ela abala os alicerces de uma
sociedade.
O ataque de 11 de setembro de
2001 reconstituiu a nação periclitante. Um mês depois, havia desempregados do Michigan ou fazendeiros expropriados do Nebraska que vinham de ônibus para Nova York: comovidos e orgulhosos, visitavam a mesma Wall
Street que, um ano antes, tinha
acabado com suas pensões e, às
vezes, com seu trabalho.
A guerra prolonga aquele momento: todos são de novo americanos por combater um inimigo
comum ou, simplesmente, por
combater. Os anos de Clinton
aparecem, na lembrança, como
um tempo em que a América se
perdeu numa futilidade yuppie.
3) Um conhecido europeu comenta as sondagens de opinião
(nos EUA, 70% a favor da guerra): "O que há com os americanos? Eles gostam de uma luta?".
Respondo: os EUA são a última
nação ocidental que se define pela
guerra. Concebidos numa revolução, consolidados pela guerra civil e pela conquista do território
arrancado aos índios, vitoriosos
nos dois conflitos mundiais, eles
vivem uma épica nacional essencialmente militar: ser americano
implica comprar brigas. Com esse
espírito, Hollywood diverte e seduz o mundo, mas, na realidade,
é um espírito que não sai barato
para ninguém.
Há mais: o país continua sendo
uma nação de imigrantes. A cada
dia, uma extravagante variedade
de povos e etnias chega para inventar uma nova vida. O sonho
de bem-estar não basta para cimentar a nação. Talvez o país
precise periodicamente de uma
guerra para consolidar essa massa versicolor. É a hora do combate: vejam se vocês se tornaram
americanos.
4) CNN, NBC e Fox, com 24 horas de noticiário, batem recordes
de audiência noite adentro. Por
que é tão difícil desligar a TV?
Nas noites de Carnaval, voltando do sambódromo, ligamos a televisão e, embora exaustos, queremos mais Sapucaí. É que o desfile
é um ícone de brasilidade. Contemplá-lo é um prazer narcisista:
"Lá vou eu".
Pois bem. As imagens desta
guerra, para os americanos, são
um conforto narcisista, uma música que diz: "Com nossa potência, com nossa falta de jeito que
transforma as boas intenções em
"danos colaterais", com nossos
mortos e feridos, lá vamos nós".
5) Sábado, em Chicago, duas
manifestações se enfrentam: contra e a favor da guerra. Um repórter, plantado entre as duas, entusiasma-se: "Dois grupos opostos
manifestando idéias opostas, essa
é a América". A própria divisão
da nação é chamada a enaltecer
sua existência: "De novo, mesmo
divididos, lá vamos nós".
6) Madrugada de domingo.
Desligo a televisão e fico em silêncio na escuridão. Cortei quando
um apresentador perguntava a
um repórter que acompanhava as
tropas: "What is happening
now?", o que está acontecendo
agora?
Pois é, logo agora, mil Josés e
mil Marias estão esperando que
chegue o dia para saber o resultado de uma biópsia ou de um exame de sangue. Agora, estão nascendo crianças. Alguém diz adeus
a um amado que morre, e alguém, acordado pela vontade de
urinar, está olhando para sua
própria cara amassada, no espelho, perguntando-se se tolerará
envelhecer. Agora, há casais
abraçados na cama, e outros que
estão transando em carros, elevadores e cantos escuros. Essas são
as informações. A guerra deveria
vir no fim do noticiário.
ccalligari@uol.com.br
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